Michael Moore continua a desmontar as atribulações da vida política americana: com Fahrenheit 11/9 ele visa, antes do mais, a figura de Donald Trump, mas o seu filme é também uma contundente análise do sistema bipartidário dos EUA — este texto foi publicado nos Diário de Notícias (1 Novembro), com o título 'Donald Trump na mira de Michael Moore — ou o cinema face às atribulações da política'.
Michael Moore contra Donald Trump? É verdade: mesmo o espectador que mantenha uma relação distante com a actualidade cinematográfica sabe o que o novo filme de Moore, Fahrenheit 11/9, é um libelo de rara contundência moral e ideológica contra o 45º Presidente dos EUA.
E não há dúvida que Moore não deixa pedra sobre pedra. O tom do seu discurso envolve um misto de surpresa e revolta, ambas unidas no mesmo radicalismo emocional. No pré-genérico do filme, somos confrontados com a memória das horas de contagem da votação de 8 de Novembro de 2016, quando tudo e todos, a começar pelos canais de televisão americanos, apontavam para a vitória esmagadora de Hillary Clinton... até que, ao princípio da madrugada, os números começaram a apontar em sentido contrário... O que leva a voz off do filme — o próprio Moore — a perguntar: “Que raio aconteceu?” (isto numa tradução muito pudica).
Fahrenheit 11/9 joga todos os trunfos que tem para jogar. A começar, claro, pela sugestão simbólica que o título contém, “invertendo” esse outro título, Fahrenheit 9/11, do filme sobre os atentados de 11 de Setembro de 2001, que valeu a Moore a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2004 (atribuída por um júri presidido por Quentin Tarantino).
O que está em jogo é de novo, em última instância, a identidade americana. Ou melhor: a decomposição dessa identidade e dos seus valores através da acção de um líder que, na sua função presidencial, de acordo com a visão política de Moore, tem atraído e, de alguma maneira, reforçado as mais inquietantes componentes fascizantes que se encontram no tecido social americano.
Daí que o filme se organize segundo uma lógica que faz lembrar os noticiários televisivos. Desde logo, porque há nele uma aposta decisiva no valor informativo das imagens (e sons) de muitos materiais informativos. Em algumas cenas, Moore trabalha sobre dados que todos conhecemos (incluindo os ataques de Trump aos jornalistas que ele aponta como criadores de “fake news”); noutras, confronta-nos com documentos surpreendentes, por vezes francamente perturbantes (por exemplo, as imagens registadas em telemóveis de agressões individuais contra latinos e afro-americanos em transportes públicos ou em plena rua).
Acontece que Moore está longe de visar apenas a figura de Trump, integrando na sua argumentação cinematográfica e política diversas referências a eventos que, na sua perspectiva, reflectem as perversões do sistema de governação do país. A mais impressionante dessas referências (ocupando, aliás, algumas dezenas de minutos no interior do filme) será a da crise da água em Flint, a cidade do estado do Michigan em que o próprio realizador nasceu (a 23 de Abril de 1954).
Para Moore, os efeitos de uma mudança na distribuição da água em Flint, ocorrida em 2014 — envolvendo mais de 100 mil habitantes numa dramática crise de saúde pública — são sinais inequívocos de um sistema em que o bem estar da colectividade está a ser regularmente ameaçado por interesses de um sector restrito de empresas e indivíduos. Esse foi, aliás, um tema transversal de um debate em que, há poucas semanas, nos estúdios da MSNBC, o próprio Moore participou.
Tudo isto nos chega através de uma narrativa cinematográfica de grande agilidade visual (e sonora), sustentada por um invulgar trabalho de montagem. A nossa relação com a visão de Moore pode ir, naturalmente, da concordância absoluta à mais firme rejeição — ele é, aliás, o primeiro a saber que não há nada de universal, muito menos de ecuménico, na sua análise. Seja como for, catorze anos depois de Fahrenheit 9/11, o novo Fahrenheit 11/9 é a exuberante confirmação de um modelo de construção narrativa que sabe organizar-se a partir de uma investigação eminentemente jornalística, sem nunca abdicar de uma elaborada, complexa e motivadora leitura do mundo à nossa volta. Dito de outro modo: Moore não se refugia em generalizações abstractas, correndo o risco ético e estético de dizer “eu”.
Também por isso, importa sublinhar uma dimensão essencial de Fahrenheit 11/9 que, infelizmente, tem sido esquecida ou iludida em muitas formas de divulgação do filme (a começar, entenda-se, pela própria campanha promocional do filme organizada a partir de imagens polarizadas na figura de Trump).
De facto, considerar que, melhor ou pior, o filme se “esgota” num libelo anti-Trump será passar ao lado da complexidade da sua argumentação. Através das atribulações protagonizadas ou geradas por Donald Trump aquilo que está em jogo é a discussão crítica da vida política nos EUA e, no limite, o funcionamento de um sistema “afunilado” numa bipartidarização (supostamente) sem alternativas.
Recorde-se, por isso, algo de muito básico: Fahrenheit 11/9 acaba por ser um objecto igualmente severo face a muitas acções e formas de intervenção política, quer de republicanos, quer de democratas. Encerrar Moore no rótulo do “ponto de vista democrata” sobre Trump será não reconhecer a pluralidade interior da sua argumentação (exemplo: a severidade com que ele avalia o comportamento de Barack Obama durante a crise da água em Flint).
Por tudo isso, estamos perante um filme genuinamente político. E não apenas porque fala das atribulações da vida política. Antes porque nos leva a reflectir sobre a cena política para além das anedotas ou diatribes que, não poucas vezes, dominam a paisagem mediática. Em jogo está a relação entre eleitores e dirigentes e, em última análise, a forma de pertença de cada cidadão a um colectivo. Não precisamos de concordar ponto por ponto com Moore para admirar o valor humanista de tal atitude criativa.