A recriação de Freddie Mercury em cinema obedece a um estilo de vulgar “imitação”: o actor Rami Malek esforça-se muito, mas Bohemian Rhapsody é um filme competente, mas menor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Novembro), com o título 'Cinema cria um “duplo” menor de Freddie Mercury'.
Foi em 1957 que Elvis Presley protagonizou o lendário Jailhouse Rock, de alguma maneira inaugurando a história das relações estéticas do cinema com o universo multifacetado do rock — de tal modo que, no auge da MTV, na década de 80, se reconheceu a influência do filme em muitos telediscos. Em tempos mais recentes, tais relações parecem dominadas por uma obsessão central, banalmente biográfica: criar personagens que “dupliquem” as figuras retratadas. O novo Bohemian Rhapsody, sobre Freddie Mercury (1946-1991), símbolo lendário dos Queen, é mais um exemplo de tal tendência.
Há, de facto, um paradoxo desconcertante e, no limite, cinematograficamente frustrante. Por um lado, o actor Rami Malek presta-se a um trabalho detalhado, sem dúvida competente e esforçado, para se “parecer” com Mercury, tentando reproduzir os mais pequenos detalhes, desde os dentes salientes até aos típicos gestos, em palco, com uma parte do microfone. Por outro lado, parece que ninguém pensou numa velha lição muito básica, de uma só vez narrativa e simbólica: não basta “imitar” uma figura real para se conseguir uma personagem consistente; em boa verdade, essa “duplicação” é tão só um recurso expressivo que qualquer actor minimamente talentoso possui.
Que fica, então, do filme assinado por Bryan Singer? Uma visão esquemática, emocionalmente correcta, de uma figura que venceu as resistências mais diversas, do pai até aos decisores da indústria discográfica, para se afirmar artisticamente, ajudando a transformar os Queen num fenómeno global que persiste para além do seu desaparecimento.
Curiosa e desconcertante é a opção que leva a construir Bohemian Rhapsody a partir da performance dos Queen no Live Aid (13 de Julho de 1985): a entrada de Mercury no palco do Estádio de Wembley é mostrada na cena de abertura, sendo a actuação dos Queen uma espécie de bónus final. Dir-se-ia que o filme tenta resgatar-se do seu convencionalismo dramático através da celebração de momentos de pura apoteose da música, das canções e, claro, da energia peculiar de Mercury. Mesmo considerando que as memórias possuem uma vibração contagiante, o cinema acontece em tom menor.