terça-feira, outubro 30, 2018

Um acontecimento chamado "Sara"

Subitamente, a televisão pensa a televisão: a série Sara, de Marco Martins, é um acontecimento que nos convoca para pensarmos as narrativas que consumimos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Outubro), com o título '“Sara”: quando a televisão faz a história'.

Sejamos precisos e, se necessário, contundentes: num país em que os principais agentes com responsabilidades culturais — a começar pelo Estado, os governos e os partidos políticos — mantivessem uma postura regular de preservação da diversidade e de defesa da inteligência criativa, uma série televisiva como Sara (RTP2) não existiria.
Porquê? Porque, em última instância, Sara está a suprir as falhas monumentais de outras entidades. Assim, ao colocar em cena uma actriz, Sara, primorosamente composta por Beatriz Batarda através de um calculado jogo de objectividade e ironia, a série dirigida por Marco Martins convoca-nos para uma tarefa urgente. A saber: uma reflexão sobre o domínio da matriz telenovelesca no espaço público português e, por isso mesmo, no imaginário dos espectadores.
Aliás, neste contexto, a palavra “urgente” adquire qualquer coisa de absurda caricatura. A formatação narrativa imposta pela telenovela começou há 40 anos e bem sabemos que, ao longo desse tempo, sempre que alguém, em nome da mais básica sensatez, chama a atenção para os efeitos práticos de tal formatação — da produção ao consumo, passando pelas falta de diversidade do mercado de trabalho de actores e actrizes —, esse alguém surge imediatamente rotulado de perigoso intelectual (é verdade: apesar das suas muitas e admiráveis proezas, a vida democrática portuguesa ainda integra a utilização da palavra “intelectual” como um insulto).
Evitemos ceder à estupidez corrente segundo a qual tentar pensar o poder narrativo, financeiro e simbólico da telenovela envolve um apelo a formas de censura. Sou mesmo dos que pensam que a facilidade com que as mais variadas atribulações da vida social, artística e institucional continuam a ser tratadas através do uso pueril da palavra “censura” tende a reforçar uma terrível ignorância. De quê? Da existência de um sistema estatal de censura durante o Estado Novo.


O certo é que a série Sara existe. Por mim, como simples espectador que valoriza a diversidade televisiva, esperei 40 anos pela chegada de algo semelhante no contexto português: afinal, a televisão pode (e, a meu ver, deve) pensar o que é, como é e o que pode ser. Presto a minha humilde homenagem a quem a encomendou, produziu, filmou, interpretou e programou.
E acrescento que o meu ponto de vista não passa de um evento microscópico no interior da imensidão do que importa conhecer e reconhecer. Dito de outro modo: a existência de Sara é mesmo um acontecimento central na nossa história cultural das últimas décadas — por uma vez, a própria criação artística expõe e pensa o espaço do seu trabalho narrativo e, em particular, o seu enquadramento televisivo; por uma vez, uma ficção televisiva resiste a ser arrastada pelas matrizes dominantes e faz história, faz a sua própria história.
Daí que importe também celebrar a especificidade das matérias narrativas de Sara. O que surge nas suas cenas não é a ilustração de uma qualquer “tese”, mas sim uma galeria de personagens observadas e acarinhadas na sua despojada vida material (roubo a expressão a Marguerite Duras).
Olhamos para o nosso ecrã caseiro e, subitamente, desapareceram as figuras automáticas e automatizadas que, todas as noites, povoam o consumo televisivo de um país inteiro. Sara é sobre pessoas complexas e verosímeis, vontades concretas e desejos enigmáticos, porventura inomeáveis, enfim, corpos com vida, corpos que resistem à condição de meros veículos de narrativas deterministas.


Fixo-me, em particular, na misteriosa personagem do “agente” de Sara. A admirável composição de Albano Jerónimo é um desses acontecimentos raros que, no limite, desafia a nossa própria condição de espectadores. Nele, através dele, deparamos com uma entidade que tem tanto de concreto (o agente que gere a carreira de uma actriz) como de transcendental (um ser cujas raízes identitárias se encontram, algures, numa paisagem exterior a qualquer mapa). Registo, em particular, o facto de esse “agente” ser definido a partir de uma convivência muito física com uma infinidade de livros. Como se a tragédia de Sara fosse o facto de viver num país que menosprezou os valores mais primitivos da literacia. O que é que isso tem a ver com a telenovela? Digamos, para simplificar, que, quando falamos do poder normalizador da telenovela, é isso mesmo que está em jogo.