CAROL (2015) |
O que significa representar uma personagem num filme? A actriz Cate Blanchett veio recolocar a questão do trabalho de representação para além de qualquer noção simplista das diferenças sexuais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Outubro).
Os muitos pensamentos, reflexões, discussões e polémicas sobre a igualdade de géneros no cinema (uma parte apenas, como é óbvio, de uma dinâmica social muito mais geral) têm sido contaminados por elementos díspares, da seriedade à irrisão. No limite mais grosseiro — e, a meu ver, também mais pernicioso para os valores igualitários que importa defender —, surgiu até a “ideia” segundo a qual a orientação sexual de uma determinada personagem só encontra a verdade da sua representação quando o respectivo actor ou actriz se define pela “mesma” orientação.
Que está em jogo? Desde logo, a violência de um fundamentalismo “social” (em rede, por certo) segundo o qual a dignidade de cada ser humano se esgota na sua indexação num “grupo” a que pertence como uma casta que não se deixa contaminar pelos estranhos que o rodeiam... E depois a monumental estupidez — que ofende a história do cinema e, mais do que isso, séculos e séculos de teatro — segundo a qual o intérprete (em palco ou frente a uma câmara) não trabalha, apenas “duplica” o que quer que seja.
Felizmente, entre aqueles e aquelas que vivem através de tal trabalho, têm surgido vozes que não aceitam que a sua profissão seja confundida com o maniqueísmo de militâncias que só agridem as causas que dizem defender. Aconteceu agora, uma vez mais, através de Cate Blanchett. No Festival de Roma, a actriz duas vezes “oscarizada” (O Aviador e Blue Jasmine) recordou o misto de absurdo e incómodo a que teve de se sujeitar em algumas entrevistas durante a promoção de Carol (2015), o filme de Todd Haynes em que interpretou uma relação lésbica (com a personagem de Rooney Mara). Como Blanchett recordou, houve jornalistas que, de forma mais ou menos explícita, por vezes acusatória, a confrontaram com a “necessidade” de ter tido alguma experiência sexual semelhante para poder assumir tal papel...
Se colocarmos a questão num plano caricatural, dir-se-ia que tais jornalistas supõem que os muitos actores que, ao longo das décadas, interpretaram a figura de Adolf Hitler terão tido como fundamento do seu trabalho alguma experiência do mesmo teor. Em qualquer caso, Blanchett definiu de forma clara o que, profissionalmente, importa ter em conta: “Lutarei até à morte pelo direito à suspensão da descrença (suspension of disbelief), interpretando papéis que estão para além da minha experiência.”
Recusando qualquer automatização “naturalista” do seu labor, Blanchett lembrou: “Para mim, há uma parte do ser actor que envolve um exercício antropológico. Nessa medida, isso leva-nos a examinar um determinado período, um conjunto de experiências ou um acontecimento histórico sobre os quais nada sabíamos.” Referindo-se à possibilidade de assumir uma personagem cujas convicções políticas sejam muito diferentes das suas, acrescentou: “Uma parte do prazer é tentar compreender o que mobiliza a personagem.”
Compreender, eis um princípio vital no mundo da representação. Em todo o caso, talvez que a palavra chave seja outra. A saber: prazer. Num universo mediático e político em que a complexidade do factor humano (incluindo a sexualidade, mas muito para além da sexualidade) tende a ser tratada como um conflito tribal em que ninguém comunica com ninguém, eis o maravilhoso escândalo: uma actriz ousa lembrar o prazer inerente ao seu trabalho. Palavra de mulher, prazer para além das diferenças sexuais.