O Museu das Notícias de Washington teve à venda “t-shirts” (entretanto, retiradas da sua loja) com uma expressão de Donald Trump; ou como se prova que a política contamina todos os níveis da sociedade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Agosto).
O que é uma boa média? Na arte de mentir, por exemplo: como se pode medir a performance de um mentiroso compulsivo? Digamos que a média diária de 7,6 mentiras é um patamar superior. Quem o conseguiu atingir? Pois bem, o presidente Donald Trump.
Não é um cálculo aproximado. Antes o resultado de um metódico inventário jornalístico realizado por The Washington Post. Ou seja: 4229 afirmações mentirosas (incluindo dados manipulados ou fora de contexto e, nessa medida, enganadores) em 558 dias de presidência — isto de acordo com a notícia publicada a 1 de Agosto.
Há quem considere que a nossa fixação mediática em Trump apenas serve para que os seus acólitos estejam a desmantelar todos os mecanismos de governação concebidos, há muitas décadas, em benefício do povo — Noam Chomsky defendeu esse ponto de vista, tão sugestivo quanto discutível, em declaração ao movimento “Anonymous”. O certo é que não é possível pensar a nossa actualidade global sem ter em conta o delirante contraste entre a fúria de Trump contra as notícias falsas que denuncia — as célebres “fake news” — e a sua própria prática quotidiana enquanto líder político.
Entretanto, nesta atribulada conjuntura surgiu um insólito elemento, à beira do surreal: o Newseum está a vender na sua loja “t-shirts” com a inscrição “You are very fake news” (à letra: “Tu és muito notícias falsas”).
Seja qual for o grau de perversidade do nosso sentido de humor, convenhamos que a comercialização de tal objecto não parece decorrer das muito sérias funções de uma instituição como o Newseum (à letra: “Museu das notícias". Estamos, de facto, perante uma entidade criada com o objectivo de informar sobre a história da comunicação e do jornalismo, tendo como principal missão a celebração da liberdade de religião, expressão e imprensa, tal como garantida pela Constituição dos EUA na sua mítica “primeira emenda” (“first amendment”), redigida em 1791.
Como se passou dessa lógica institucional para a ligeireza política, demasiado política, de uma “t-shirt”? Eis uma questão que está a gerar um evidente mal estar (mesmo sabendo-se que as vendas da loja do Newseum podem servir para atenuar os problemas orçamentais com que a instituição se debate). Robert MacNeil, decano do jornalismo americano, autor de um livro clássico sobre o assassinato de John Kennedy, já veio dizer: “Creio que, obviamente, pretende ser uma brincadeira, mas não me parece que seja uma brincadeira feliz.” Entre as personalidades que deram conta da sua indignação incluem-se Pete Souza, fotógrafo oficial da Casa Branca durante a presidência de Barack Obama, e Hadas Gold, jornalista da CNN; no Tweeter, Gold escreveu: “O Newseum tem um memorial dedicado aos jornalistas mortos em trabalho. Porque é que estão a vender camisolas de “fake news”? Uma coisa é vender parafrenália política, outra é promover uma frase autoritária que regimes de todo o mundo aplicam contra a liberdade de imprensa.”
Como se prova, neste mundo saturado de imagens (e “t-shirts”!...), ainda conta o que se diz, como se escreve e onde se escreve. Afinal de contas, uma “t-shirt” é também uma forma de encenação do nosso próprio corpo.