sexta-feira, agosto 24, 2018

De Bresson a Schrader, regressando a Bresson

Como se o cinema nascesse ali mesmo, dentro do filme, através do filme: assim é O Carteirista, de Robert Bresson, uma das grandes reposições deste Verão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Agosto), com o título 'Cinema de corpo e espírito'.

Acredito que muitos espectadores se recordarão do final desse filme magnífico que é American Gigolo (1980), de Paul Schrader. No cenário de uma prisão, separados por um vidro, Julian (Richard Gere) e Michelle (Lauren Hutton) vivem um momento da mais pura redenção: para lá das dramáticas convulsões da sua relação, o amor, entre eles, existe. A ponto de Julian, procurando a carícia da mão de Michelle, do outro lado do vidro, dizer: “Demorou tanto tempo até chegar a ti” [eis um video desses momentos eloquentes, embora com o facto desagradável de se tratar de uma dobragem italiana].


Quer os espectadores o saibam ou não, vale a pena lembrar que Schrader citava, assim, de forma muito directa e explícita, a cena final de um outro filme: O Carteirista (1959), de Robert Bresson, precisamente mais um clássico absoluto do cinema francês a pontuar o nosso Verão cinematográfico [eis os momentos finais do filme de Bresson].


De tão evidente e assumida, esta “coincidência” ajuda a resumir a grandeza de um autor como Bresson: a sua linguagem depurada e austera, envolvendo a celebração da dimensão espiritual das relações humanas, conferem-lhe o estatuto de um dos mais influentes mestres do cinema francês. E, como se prova, com ecos criativos para além de França. No caso de Schrader, argumentista de vários filmes de Martin Scorsese (incluindo Taxi Driver), vale a pena recordar que ele dedicou a sua tese universitária a três cineastas — Bresson, o dinamarquês Carl Th. Dreyer e o japonês Yasujiro Ozu — do chamado “cinema transcendental” (a tese, Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer, foi publicada em 1972).
Centrado na trajectória solitária de um carteirista, o filme de Bresson concretiza de forma sublime a sua relação com os corpos dos actores. Tudo se passa como se cada gesto contivesse a possibilidade enigmática (transcendental, sem dúvida) de revelar uma verdade humana que não cabe na banalidade do quotidiano. E escusado será sublinhar que o facto de esta ser também uma história de dinheiro e sobrevivência não é estranho à misteriosa sedução das imagens e sons de Bresson. Enfim, nem tudo acontece através de personagens e cenários digitais — quase 60 anos depois, O Carteirista continua a ser um filme revolucionário.