segunda-feira, maio 28, 2018

Eduardo Lourenço — do livro ao filme (1/2)

Como divulgar/encenar um pensamento? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Maio), com o título 'Eduardo Lourenço filmado entre palavras e fantasmas'.

Se é verdade que algum do mais interessante cinema dos nossos dias oscila entre a crueza do documentário e o artifício da ficção, então o mínimo que se pode dizer de O Labirinto da Saudade é que se trata de um filme que arrisca na ambiguidade dessa oscilação. Estamos perante uma derivação de uma nobre tradição cinematográfica que, no contexto português, envolve o pioneirismo de Leitão de Barros (Maria do Mar, 1930), o experimentalismo de Fernando Lopes (Belarmino, 1964) ou a contundência poética de António Reis e Margarida Cordeiro (Ana, 1982).
Para o realizador Miguel Gonçalves Mendes, tratou-se de celebrar os 95 anos de Eduardo Lourenço como uma ficção protagonizada pelo próprio, deambulando por corredores reais e imaginários, dialogando com várias personalidades das artes, letras e espectáculo (Álvaro Siza Vieira, Gonçalo M. Tavares, Lídia Jorge, Pilar del Rio, Ricardo Araújo Pereira, etc.); ao mesmo tempo, essa ficção funciona como um documento sobre o livro cujo título é retomado pelo próprio filme.
Convém lembrar, por isso, que a primeira edição de O Labirinto da Saudade surgiu em 1978, com chancela das Publicações Dom Quixote. Quarenta anos passados, compreendemos outro tipo de ambiguidade: por um lado, o livro reflecte as euforias, perplexidades e impasses de um país ainda muito marcado pelas heranças (ou pelos traumas, como se diz no filme) de uma ditadura de mais de quatro décadas; por outro lado, a sua acuidade crítica surge reforçada, de modo infinitamente perturbante, face a este nosso tempo em que a aceleração mediática parece esgotar-se num programa de vida encerrado no quotidiano endeusamento do futebol. Por alguma razão, Eduardo Lourenço lhe deu o subtítulo: “Psicanálise Mítica do Destino Português”.
Dir-se-ia que estamos perante uma psicanálise cinematográfica de um pensador que, através do seu fundamental instrumento (o pensamento, hélas!), tem sabido escrever e descrever este nosso desejo obsessivo, porventura insensato, de sermos outra coisa para além daquilo que a história nos fez: “Chegou o tempo de nos vermos tais quais somos, o tempo de uma nacional redescoberta das nossas verdadeiras riquezas, potencialidades, carências, condição indispensável para que algum dia possamos conviver connosco mesmos com um mínimo de naturalidade” — palavras de 1978, fantasmas de 2018.

Onde está o povo?

Podemos, talvez, perguntar se o confronto do protagonista com figuras mais ou menos consagradas não favorece a ideia de um espaço fechado de reflexão, sobretudo tendo em conta que a palavra “povo” não é um acontecimento banal na escrita de Eduardo Lourenço. Podemos também duvidar da pertinência narrativa de algumas derivações “simbólicas” que parecem subtrair o próprio retratado ao mundo concreto que, afinal, atravessa a sua obra como uma magnífica obsessão.
Dir-se-ia que falta ao filme essa dimensão visceral do pensamento de Eduardo Lourenço que nos leva a reconhecer (e a pensar com ele) que o mundo não se esgota nos discursos dos “especialistas”. Porquê? Porque a nossa “desordem” a isso nos obriga. É ele que, em O Esplendor do Caos (Gradiva, 1998), nos recorda o sedutor radicalismo dos nossos dramas interiores: “Pode discutir-se se a desordem em que estamos mergulhados — desde a económica até à da legalidade e da ética — releva ou não, em sentido próprio, do conceito de caos. Do que não há dúvidas é de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor.”
“O Eduardo vive como se fosse eterno” — eis a bela descrição de Eduardo Lourenço por sua mulher, Annie, recordada no filme por José Carlos Vasconcelos. Para além de desequilíbrios ou impasses, O Labirinto da Saudade é um objecto apostado em celebrar o cinema como cúmplice desse desejo de eternidade, da sua intratável inocência. Sem esquecer a resposta do próprio Eduardo Lourenço: “Eternas são as pessoas que ficam na nossa memória, no nosso coração, depois de termos sofrido a prova suprema da sua falta, da sua ausência — e essa é incurável.”