Cinema brasileiro não é telenovela em sala escura: alguns filmes para que não nos esqueçamos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Março).
Subitamente, através da acção de algumas “pequenas” distribuidoras, a produção cinematográfica brasileira está em evidência no mercado português. Há dias, a Alambique colocou nas salas o magnífico Como Nossos Pais, drama familiar realizado por Laís Bodanzky, com um elenco em que se destacam Maria Ribeiro e Clarisse Abujamra. A partir de quinta-feira, a Nitrato celebra a obra de Eduardo Coutinho, estreando o seu título final, Últimas Conversas (2015), a par de Edifício Master (2002) e Jogo de Cena (2007), enquanto a Midas lança No Intenso Agora, de João Moreira Salles, evocação documental das convulsões políticas da década de 1960, com banda sonora composta por Rodrigo Leão. Ainda com chancela da Midas, o documentário Cinema Novo, de Eryk Rocha, tem estreia marcada para a primeira semana de Abril.
A simples presença destes títulos relembra uma evidência há décadas sublinhada por alguma crítica de cinema. A saber: é inútil, e profundamente demagógica, a celebração de uma qualquer “irmandade” cultural com o Brasil quando a sua expressão audiovisual dominante (para não dizer única) se reduz a telenovelas formatadas, repetidas e repetitivas.
Há um outro Brasil de imagens e sons que, em grande parte, continua por descobrir. Importa encarar esse Brasil, não como um objecto cuja transparência estaria garantida pela língua comum, antes como um espaço em que reconhecemos o fascínio de muitas diferenças. Representar o Brasil (desde logo o Brasil cinematográfico) como uma derivação “natural” das componentes culturais portuguesas é, em última instância, afastarmo-nos dele. Há toda uma história, uma teia de sensibilidades e narrativas que nos convocam para um sedutor trabalho de descoberta. E por mais incómodo que isso possa ser para os discursos ecuménicos da nossa classe política, a presença do cinema brasileiro nas salas portuguesas no começo da década de 1970 (com a referência dominante de António das Mortes, de Glauber Rocha, lançado pela “pequena” distribuidora Animatógrafo, de António da Cunha Telles) era incomparavelmente mais importante.
O exemplo de Como Nossos Pais envolve peripécias que, ironicamente, até podiam ser material típico de novela: uma mãe marcada por uma profissão frustrante, um marido estranhamente ausente das tarefas domésticas, uma avó que enfrenta uma doença terminal... Acontece que os filmes não se distinguem pelos “temas” que abordam, antes pela linguagem com que convocam o espectador. E este é um filme interessado na inteligência do espectador.