Quase com um ano de atraso (integrou a competição de Cannes/2017), Wonderstruck, de Todd Haynes, chegou às salas portuguesas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Março), com o título 'A música interior'.
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Provavelmente, um dos índices mais reveladores das singularidades criativas de um cineasta é a sua relação com a música. Não apenas pelas qualidades específicas das bandas sonoras dos seus filmes, mas sobretudo pelo modo como as matérias musicais se tornam elemento fulcral da dramaturgia — o exemplo clássico de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann pode servir de símbolo modelar de tal cumplicidade.
Algo de semelhante se poderá dizer da relação de Todd Haynes com o compositor Cater Burwell. Wonderstruck é o quarto título em que colaboram, depois de Velvet Goldmine (1998), Mildred Pierce (2011) e Carol (2015), com resultados sempre sedutores — a música de Wonderstruck remete-nos mesmo para um certo romanesco clássico a que estão ligados nomes como Franz Waxman, Miklós Rózsa ou Dimitri Tiomkin. Em qualquer caso, Haynes é também alguém que se interessa pelo modo como a música define as fronteiras e utopias das suas personagens. Para além da referência óbvia de Velvet Goldmine, inspirado em David Bowie, temos o especialíssimo caso de I’m Not There – Não Estou Aí (2007), uma biografia “plural” de Bob Dylan, interpretado não por um actor, mas seis (incluindo, aliás, uma actriz: Cate Blanchett).
Para Haynes, a música em geral e as canções em particular não são, de facto, elementos de “acompanhamento”. Entram nas suas histórias como pontuações, ora discretas, ora intensas, contaminando, a partir do interior, as acções e pensamentos das personagens. Num tempo em que as bandas sonoras deixaram de ser matéria forte dos mercados audiovisuais, a atitude de Haynes é também um factor sintomático da sua independência criativa. Para que conste, entre os projectos que ele tem em mãos há um documentário dedicado aos Velvet Underground e um filme sobre Peggy Lee.