Como se faz e, sobretudo, como se mantém uma estrela? Jennifer Lawrence está nessa encruzilhada — estes textos forma publicados no Diário de Notícias (28 Fevereiro e 1 Março).
Perversa questão de Hollywood: num universo em que a exaltação do feminino se tornou um discurso “militante”, algumas das suas grandes estrelas femininas parecem testar os seus limites imitando estereótipos... masculinos. O modelo do espião/agente secreto tem sido o mais procurado. Assim aconteceu com Angelina Jolie em Salt (2010) e Charlize Theron em Atomic Blonde (2017), em qualquer caso, filmes bem curiosos (sobretudo o primeiro). Com A Agente Vermelha, Jennifer Lawrence aposta na mesma via, interpretando uma bailarina russa mobilizada para encurralar um agente da CIA, embora com resultados francamente menos interessantes. Francis Lawrence, que a dirigiu em The Hunger Games, assina uma espécie de caricatura dos filmes “ideológicos” da Guerra Fria, numa narrativa que vai menosprezando as personagens para privilegiar as proezas técnicas.
Jennifer Lawrence é a actriz capaz de assumir riscos criativos como o do apocalíptico Mãe!, de Darren Aronofsky, por certo um dos títulos mais perturbantes de 2017. Mas é também a imagem azul de Mystique que se vai reproduzindo em aventuras dos X-Men...
Agora com 27 anos, tem a sorte de não ter de escolher uma dessas vias contra a outra. A sua carreira vai acontecendo numa “esquizofrenia” artística que oscila entre os estereótipos das aventuras juvenis e as provas muito reais de um invulgar talento dramático. A saga The Hunger Games terá sido a ilustração perversa de tais contrastes, numa trilogia que passou da dimensão trágica do primeiro episódio, realizado por Gary Ross, para as redundâncias do último, dividido em duas partes, com assinatura de Francis Lawrence (o mesmo que a dirige, agora, em A Agente Vermelha).
David O. Russell terá sido, até agora, quem mais e melhor valorizou a sua versatilidade. Primeiro, em Guia para um Final Feliz (2012), dirigindo-a numa personagem a vogar na fronteira instável entre sanidade e loucura (interpretação que lhe valeu o Oscar de melhor actriz). Depois, através de Golpada Americana (2013), reencontrando toda uma mitologia romanesca (não romântica, entenda-se) enraizada na década de 1970. Finalmente, em Joy (2015), oferecendo-lhe um papel de fascinante complexidade, evoluindo do cliché dramático para a máxima densidade emocional.
Convém lembrar que a sua revelação ocorreu em 2010, com Despojos de Inverno, de Debra Granik, uma dessas pérolas que, ciclicamente, brotam do espaço dos independentes. Com um misto de delicadeza e intensidade, Lawrence assumia os traços de uma jovem à procura do seu lugar, condenada a uma entrada violenta na idade adulta, numa degradada zona rural do Missouri — era um retrato intransigentemente realista de uma América profunda, alheia a qualquer mitologia. Paradoxalmente ou não, sabemos agora que era também o nascimento de uma estrela.