Margot Robbie, Eu, Tonya |
Na história da patinagem no gelo e, mais do que isso, nos anais do desporto, Tonya Harding ficou como protagonista de um escândalo perturbante. Em 1994, quando a sua rival Nancy Kerrigan foi atacada por um homem com ligações ao ex-marido de Tonya (de modo a impedir a sua participação nos Jogos Olímpicos de Inverno daquele ano), de imediato o seu nome surgiu associado à agressão, desencadeando um dramático processo de investigação e julgamento. O filme Eu, Tonya evoca tudo isso num registo singularmente intimista.
O intimismo nasce da elaborada teia de contrastes proposta pelo filme escrito por Steven Rogers e realizado por Craig Gillespie. Tudo se passa como se se tratasse de uma reportagem. Os actores, sem deixarem de assumir as suas personagens, vão pontuando a acção através de sucessivos depoimentos prestados directamente para a câmara, num sugestivo esquema de “falso documentário”.
Não é um modelo narrativo original — vimo-lo, por exemplo, em títulos tão complexos e fascinantes como Cenas da Vida Conjugal (1973), de Ingmar Bergman, ou Maridos e Mulheres (1992), de Woody Allen. O certo é que Gillespie sabe aplicá-lo de modo a sublinhar a pergunta que assombra tudo e todos: o que é que Tonya fez (ou não fez) que tivesse contribuído para o plano de agredir Nancy?
Pertence ao espectador descobrir a resposta do filme a tal interrogação. Em todo o caso, mesmo evitando revelar as respectivas nuances, vale a pena dizer que Eu, Tonya não é um objecto de explicações deterministas. Há mesmo duas componentes essenciais na definição da personagem da patinadora. Uma é de natureza familiar: desde a infância, Tonya vive como uma “invenção” terna e cruel da própria mãe, empenhada em transformá-la numa vedeta da patinagem e, sobretudo, numa vencedora. A outra é subtilmente social: em Nancy, Tonya vê mais do que uma adversária desportiva; ela é, afinal, o símbolo de uma sofisticação ligada a um estatuto “superior” (ou como tal celebrado pelos media) de que Tonya parece estar excluída.
A caminho dos Oscars
No actual contexto de Hollywood, Eu, Tonya reafirma um realismo intransigente e visceral, em tudo e por tudo alheio aos valores narrativos de “blockbusters” e super-heróis. Nessa perspectiva, podemos mesmo aproximá-lo do novo, e também magnífico, filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris (sobre um episódio terrorista, também inspirado em factos verídicos).
A energia de Eu, Tonya é indissociável do trabalho dos actores e, em particular, de duas actrizes: Margot Robbie, como Tonya, e Allison Janney, no papel da mãe, ambas com nomeações para os Oscars, na categoria principal e como secundária, respectivamente (o filme está ainda nomeada na categoria de montagem). Janney sempre foi uma talentosa secundária — recordemo-la, por exemplo, em Um Lugar para Viver (2009), de Sam Mendes — e, de acordo com todas as previsões, terá a sua estatueta dourada na cerimónia do dia 4 de Março.
Quanto a Robbie, não sendo favorita, tem aqui uma das mais atípicas, e também mais brilhantes, performances deste ano cinematográfico. Através de um incrível trabalho de transfiguração, ela consegue a proeza de nos revelar Tonya como um ser humano instalado numa esplendorosa contradição: por um lado, vêmo-la como expressão de uma vulgaridade (para não dizer fealdade) alheia a qualquer elegância ou espectacularidade; por outro lado, a sua entrega obsessiva às exigências da patinagem transfiguram-na em símbolo bizarro, mas genuíno, do mais utópico “Sonho Americano”.