Todo o Dinheiro do Mundo tinha Kevin Spacey... passou a ter Christopher Plummer: uma história de usos e costumes do nosso tempo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Fevereiro), com o título 'O filme em que Christopher Plummer substituiu Kevin Spacey'.
Até que ponto o filme Todo o Dinheiro do Mundo ficará marcado pelas muitas atribulações que marcaram a sua gestação? Eis uma pergunta a que, provavelmente, os tesoureiros de Hollywood serão os primeiros a querer responder. Em todo o caso, para além dos milhões de dólares em jogo, não há dúvida que a nova realização do veterano inglês Ridley Scott vai ficar para a história como um “case study” dos usos e costumes de 2017.
Tratava-se de contar o caso verídico do rapto de John Paul Getty III, em 1973, em Roma. O facto de os raptores exigirem um resgate de 17 milhões de dólares para devolverem à família o jovem de 16 anos fez com que o seu avô, o multimilionário John Paul Getty (na altura, com 80 anos, tido como o homem mais rico do mundo), adquirisse um papel fulcral no drama. De facto, ele era o único em condições de satisfazer o resgate. Apesar dos esforços conjugados da mãe do jovem raptado e de um conselheiro do velho Getty, este revelou-se um obcecado gestor de cada cêntimo da sua fortuna, não se mostrando disposto a pagar...
Como foi amplamente noticiado, Kevin Spacey era o intérprete de John Paul Getty. Destacava-se nos primeiros cartazes do filme [exemplo aqui em baixo], integrando também o trailer divulgado em meados de Setembro do ano passado. No final de Outubro, Spacey foi alvo de várias denúncias de assédio e agressão sexual. A 8 de Novembro, The Hollywood Reporter noticiava que, na sequência de conversas com o principal produtor do filme (Imperative Entertainment), Scott comunicara ao respectivo estúdio (Sony/TriStar) a sua intenção de refilmar todas as cenas em que surgia John Paul Getty, com Spacey a ser substituído por Christopher Plummer. Ironicamente, Plummer fora a escolha inicial de Scott que tinha cedido à pressão do estúdio, considerando que Spacey seria um nome com maior apelo comercial.
Milhões e mais milhões
Dir-se-ia que o assombramento do dinheiro acabou por contaminar a existência do próprio filme. É certo que as novas cenas com John Paul Getty — envolvendo a mãe e o conselheiro, interpretados por Michelle Williams e Mark Wahlberg, respectivamente — ficaram concluídas em apenas dez dias no final de Novembro. Mas no início de Janeiro The Washington Post noticiava que Wahlberg, o mais bem pago do elenco, teria recebido um suplemento de 2 milhões de dólares, enquanto Michelle Williams, segundo o USA Today, se limitara a ganhar um total de 800 dólares (correspondente a 80/dia).
O facto reacendeu o debate sobre as diferenças de pagamento de actores e actrizes em Hollywood, de tal modo que Wahlberg acabou por entregar o dinheiro que recebera ao “Time’s Up”, movimento contra o assédio sexual criado a 1 de Janeiro por um grupo de celebridades de Hollywood. Globalmente, o orçamento final de Todo o Dinheiro do Mundo terá rondado os 50 milhões, 10 dos quais gastos nas novas filmagens.
No plano estritamente cinematográfico, é inútil especular sobre eventuais diferenças entre uma versão e outra (em boa verdade, só existe a segunda). O filme revela muitos problemas de construção dramática, banalizando a história que tem para contar através da acumulação de clichés dos “thrillers” mais rotineiros. A direcção de actores é mesmo uma das principais fraquezas da direcção de Scott, com Michelle Williams num dos trabalhos mais desconexos da sua carreira.
Ainda assim, Scott terá conseguido um dos seus objectivos principais: colocar Todo o Dinheiro do Mundo na corrida aos Oscars, embora com apenas uma nomeação, precisamente para Plummer na categoria de actor secundário. Pequena vitória de consolação: aos 88 anos, Plummer tornou-se o mais velho actor alguma vez nomeado em qualquer categoria de interpretação.