I. Está instalada a agitação mediática em torno de um documento publicado por D. Manuel Clemente, intitulado 'Nota para a receção do capítulo VIII da exortação apostólica 'Amoris Laetitia''. Em boa verdade, assistindo à proliferação de textos que se têm insurgido contra aquilo que seria a interdição de relações sexuais aos casais católicos "recasados", fica-se com a sensação de que quase ninguém leu o texto em causa. Assistimos apenas a mais um fenómeno da miséria "social" em que vivemos: desde que seja possível criar alguma agitação em torno de uma frase solta ou uma palavra descontextualizada, segue-se uma avalanche de impropérios contra alguém (pessoa, grupo ou instituição) que se elege como alvo a abater.
II. Não estou especialmente empenhado em argumentar em torno do documento de D. Manuel Clemente — não me reconheço nele, é uma questão do meu foro pessoal, passo à frente.
III. Importa apenas referir que tal documento não é exactamente legislador, nascendo antes de uma postura que se quer de ampla abertura moral, obviamente formulada de acordo com os cânones católicos. Cito, por isso: o que D. Manuel Clemente faz é defender a ideia de "propor" aos referidos casais uma "vida em continência". Cito de novo: tal ideia decorre de uma outra, formulada pelo Papa Francisco na referida exortação apostólica, quando diz que "pode-se propor o compromisso em viver em continência", acrescentando que a "'Amoris laetitia' não ignora as dificuldades desta opção (...) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito."
IV. Qual é a surpresa? De onde vem o choque? Na verdade, o que encontramos aqui é apenas — sublinho: apenas — um corolário de conceitos da Igreja Católica enraizados em muitos séculos de história, da sua história. Aliás, não deixa de ser interessante referir (e quase ninguém o fez) que, concorde-se ou não com o que diz D. Manuel Clemente e aquilo que o Papa Francisco escreveu, estas tomadas de posição reflectem algum empenho em lidar com a complexidade de um tempo, o nosso presente, em que muitos daqueles conceitos correm o risco de passar ao lado dessa complexidade.
V. Infelizmente, quase tudo aquilo com que temos sido bombardeados não reflecte qualquer disponibilidade para lidar com os preceitos de uma instituição profundamente enraizada na sociedade portuguesa e, em boa verdade, na educação de todos nós. Estamos apenas perante mais um evento do infantilismo hedonista que rege o comércio "social" das ideias e, sobretudo, da falta delas. Assim, ninguém reage à monstruosa acumulação de estupidez favorecida pela representação da sexualidade no Big Brother televisivo e seus derivados. Mas, para contentamento de quem teme as dificuldades inerentes ao acto de pensar, D. Manuel Clemente parece servir de bobo "social". Não precisamos de nos reconhecer na visão da sexualidade que ele enuncia; o certo é que há nessa visão, pelo menos, uma tentativa de pensar as relações humanas para além de qualquer maniqueísmo (sexo/não-sexo) que nos prive da nossa humanidade.