Anthony Sadler, Spencer Stone, Clint Eastwood e Alek Skarlatos [MovieWeb] |
O novo filme de Clint Eastwood, 15:17 Destino Paris, transforma figuras verídicas em actores das suas personagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Fevereiro), com o título 'Os soldados de Clint Eastwood são actores da sua própria história'.
Vivemos num tempo de proliferação de imagens, muitas delas empenhadas em mostrar-nos o que é, e como é, o mundo à nossa volta. Em particular na televisão, somos todos os dias bombardeados pelas transmissões em directo, apostadas em construir uma visão dos acontecimentos “em tempo real”. Dito de outro modo: no audiovisual contemporâneo, directa ou indirectamente, a questão da verdade está sempre presente. Com uma pergunta obsessiva: que grau de verdade podemos, ou devemos, atribuir àquilo que nos é dado ver?
Com o seu novo filme, 15:17 Destino Paris, Clint Eastwood apresenta uma singularíssima resposta a tal pergunta. Dir-se-ia que o veterano realizador (87 anos) quis baralhar e voltar a distribuir as cartas estéticas e éticas de um jogo tão delicado quanto complexo: para dar conta da experiência verídica de três jovens soldados americanos que impediram um ataque terrorista num comboio, Eastwood escolheu os próprios soldados como intérpretes das suas personagens.
São eles Spencer Stone, Anthony Sadler e Alek Skarlatos, com 22-23 anos no Verão de 2015. Em férias na Europa, depois de um périplo por vários países, saíram de Amsterdão para Paris no dia 21 de Agosto, tomando o comboio de alta velocidade Thalys, com partida às 15h17. A certa altura, um jovem marroquino de nome Ayoub El Khazzani, depois de muitos minutos fechado numa casa de banho, irrompeu nos corredores do comboio ameaçando os passageiros com uma espingarda e uma pistola (na sua mochila transportava uma grande quantidade de munições e uma lata de petróleo).
No misto de confusão e pânico que se instalou, El Khazzani ainda feriu um passageiro, mas graças à acção de Stone, Sadler e Skarlatos, o atacante seria neutralizado. Poucos dias mais tarde, os três jovens americanos (e ainda Chris Norman, britânico que teve também um papel determinante nos acontecimentos) receberiam a Legião de Honra do estado francês das mãos do presidente François Hollande.
À flor da pele
A envolvente energia do filme está longe de se esgotar nos minutos do ataque, afinal tão breves quanto perturbantes. Aliás, a obsessão realista de 15:17 Destino Paris produz um efeito francamente fora de moda. Escusado será sublinhar que o olhar de Eastwood nada tem a ver com as convenções mil vezes repetidas das aventuras de super-heróis. Mas também não se pode dizer que o heroísmo das suas três personagens centrais seja, para ele, um tema épico.
15:17 Destino Paris não é uma epopeia, antes uma crónica marcada pelos contrastes mais extremos da condição humana. Assim, as fascinantes cenas de Stone, Sadler e Skarlatos ainda crianças relembram-nos que os respectivos perfis mentais e emocionais se enraízam em estruturas familiares específicas e modos muito particulares de educação; no caso de Stone e Skarlatos é particularmente importante o facto de serem filhos de mães solteiras e também a sua passagem por um liceu de inspiração cristã (na visão de Eastwood, os respectivos métodos educacionais não serão um modelo de atenção às subtilezas da infância e adolescência).
Mais tarde, quando os vemos a deambular por cenários europeus, não há nenhum determinismo heróico no seu comportamento; somos mesmo levados a observá-los como protótipos do cliché do turista americano, mais ou menos indiferente aos cenários que vai registando no seu telemóvel (observe-se o seu enfado perante as maravilhas de Veneza).
Quando irrompe a cena brutal do comboio, o que mais conta é esse contraste entre a condição vulgar das personagens e o carácter excepcional do seu comportamento naquele momento tão dramático. Eastwood continua a ser um retratista de um paradoxo visceralmente humano: os heróis não protagonizam uma “missão”, são apenas figuras anónimas do comboio que partiu 17 minutos depois das três da tarde.