terça-feira, fevereiro 27, 2018

"Christine" ou a morte em directo

Desde o dia 21 de Fevereiro, o filme Christine (2016), de Antonio Campos, está na programação dos canais TVCine: ficará, por certo, como um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro), com o título 'Quando uma repórter de televisão se suicidou num programa em directo'.

Christine Chubbuck
[Rolling Stone]
Nas memórias íntimas da televisão, a história da repórter americana Christine Chubbuck constitui, por certo, um dos capítulos mais estranhos e perturbantes. Na sequência de um complexo processo de depressão, envolvendo atribulações da vida privada e alguma frustração profissional, Christine suicidou-se, em directo, com um tiro na cabeça, durante uma emissão do WXLT, um canal regional da cidade de Sarasota, no estado da Florida — foi no dia 15 de Julho de 1974, faltava pouco mais de um mês para completar 30 anos de idade.
Podemos conhecer a sua história através de Christine, notável filme de Antonio Campos, americano de ascendência brasileira, inédito no circuito comercial português, tendo passado no Lisbon & Estoril Film Festival de 2016 — está agora disponível na programação dos canais TVCine.
O menos que se pode dizer de Christine é que se trata de um objecto de cinema que evita transformar a tragédia da sua personagem central em “símbolo” do que quer que seja. Do mesmo modo, o contexto televisivo em que Christine trabalha não pode ser encarado como um retrato de “toda” a televisão: em termos históricos, a realização de Campos interessa-se pelas especificidades da conjuntura audiovisual de meados da década de 70, ao mesmo tempo que, no plano psicológico, observa as nuances mais delicadas da história pessoal de Christine.

Televisão e sexo

Em 1965, aos 21 anos de idade, Christine Chubbuck tinha concluído o curso de comunicação audiovisual na Universidade de Boston. Acumulando experiência em vários canais televisivos, participou ainda, durante o Verão de 1967, num workshop de rádio e televisão da Universidade de Nova Iorque. O WXLT abriu-lhe as portas, permitindo-lhe consolidar uma posição de repórter vocacionada para os assuntos sociais e, em particular, para os temas da infância. A qualidade das suas reportagens levou os responsáveis do canal a entregarem-lhe a apresentação do Suncoast Digest, um “talk show” matinal sobre os habitantes de Sarasota, com especial destaque para as actividades comunitárias de recuperação e reintegração de toxicodependentes.
A realização inscreve o trabalho de Christine numa dinâmica televisiva de importante valorização dos temas sociais. Mas não é, de modo algum, uma paisagem linear aquela em que esse trabalho se desenvolve. Os seus conflitos com o director do canal, Michael Nelson (interpretado pelo dramaturgo Tracy Letts), decorrem de uma tensão que, em boa verdade, persiste nos nossos dias: trata-se de saber se se opta por uma informação que visa, em última instância, a compreensão das clivagens de toda uma sociedade ou, pelo contrário, se a televisão se satisfaz com a abordagem pitoresca de alguns casos individuais.
O filme é tanto mais subtil quanto cruza essa problemática com as atribulações pessoais de Christine, sobretudo as suas tendências suicidas. Aos 26 anos, tinha tentado pôr fim à vida com uma overdose de várias drogas, estando a seguir tratamento psiquiátrico nos meses que antecederam a sua morte. Era uma situação que ela não escondia de vários colegas, sobretudo do também apresentador e principal confidente George Peter Ryan (Michael C. Hall, protagonista da série Dexter). Veio mesmo a saber-se que Christine tinha dado conta a esses colegas do desencanto com que encarava a sua vida sexual: estava à beira de fazer 30 anos e era ainda virgem.

Um mundo de ecrãs

No papel de Christine Chubbuck encontramos Rebecca Hall, actriz inglesa que começou a surgir no radar internacional quando interpretou Vicky Cristina Barcelona (2008), sob a direcção de Woody Allen. A sua composição é, de longe, a maior proeza da sua carreira, conseguindo passar para o espectador uma fundamental sensação: há um misto de sedução e resistência que nasce da sua exposição no pequeno ecrã. No limite, pode mesmo dizer-se que Christine é alguém que tenta sobreviver entre os poderes da sua imagem pública e a violência emocional dos seus dramas privados.
Antonio Campos, importa lembrar, não é um autor estranho à temática dos ecrãs, suas euforias e fantasmas. O seu Depois das Aulas (2008), centrado num estudante de liceu que vive quase só através das imagens que regista e difunde na Internet, é mesmo um dos mais impressionantes filmes que se fizeram neste século XXI sobre a contaminação da existência humana pelas componentes do mundo virtual.
Christine pode incluir-se numa longa e fascinante tradição de abordagem do universo televisivo pelo cinema americano — entre os momentos emblemáticos de tal tradição encontramos títulos fundamentais como Network (1976), de Sidney Lumet, e Quiz Show (1994), de Robert Redford, ou ainda, mais recentemente, Money Monster (2016), de Jodie Foster. Esquecido pelas salas de cinema, em Portugal e muitos outros países, Christine surge agora, ironicamente, na televisão.