O ciclo 'Amor & Intimidade' constitui uma preciosa oportunidade para ver ou rever alguns filmes que desafiam as representações correntes, mais ou menos virtuais, ditas sociais, da pulsão amorosa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Fevereiro), com o título 'Dez filmes para redescobrir o amor e a sua intimidade'.
Será possível ver e pensar os filmes para além da aceleração mediática em que vivemos? Mais do que isso: será possível superar as visões anedóticas do passado cinéfilo e manter uma relação viva, de prazer e descoberta, com os filmes mais “antigos”? Pois bem, o ciclo ‘Amor & Intimidade’, [a partir de hoje] no cinema Nimas, responde afirmativamente a tais questões, propondo uma dezena de títulos unidos por um tema transversal — a fronteira entre público e privado —, todos eles acompanhados por debates. A organização pertence ao Instituto de História da Arte, em colaboração com a Medeia Filmes e a Leopardo Filmes, com a participação de investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
O texto de apresentação contém uma pergunta cuja pertinência, face às convulsões do nosso presente, importa sublinhar: “Como encarar o facto de as redes sociais alimentarem uma cultura cada vez mais confessional onde já não parece haver lugar para qualquer pudor a respeito da sobre-exposição do EU?”.
Está, assim, em jogo tudo aquilo que faz do privado esse domínio de personagens, comportamentos e valores que, por definição, resiste à exposição pública. Os conceitos de “amor” e “intimidade” que o título refere não são, por isso, sugestões de um qualquer romantismo abstracto — são temas enredados com a sensibilidade e os desejos, a vida e a morte de personagens muito concretas.
O título de abertura, Deus Sabe Quanto Amei (1958), de Vincente Minnelli, e A Minha Noite em Casa de Maud (1969), de Eric Rohmer, serão símbolos exemplares de todas essas dinâmicas, sendo também duas das raridades que o ciclo propõe. O filme de Minnelli é um objecto lendário que pode resumir a glória romanesca da idade de ouro de Hollywood; com um elenco que inclui Frank Sinatra, Shirley MacLaine e Dean Martin, nele se conta uma história em que a intensidade do amor passa também pelas palavras que não se dizem. Daí o feliz contraste: A Minha Noite em Casa de Maud é o exemplo mais sofisticado do “cinema de palavras” segundo Rohmer, um mergulho na intimidade cujo pudor na exposição dos corpos vai a par da erotização da fala.
“Boy meets girl”
Uma Lição de Amor (1954), de Ingmar Bergman, O Medo (1954), de Roberto Rossellini, e Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais, são referências clássicas que regressam, de algum modo ilustrando uma vontade de perscrutação dos enigmas humanos que antecipa a eclosão das “novas vagas” da década seguinte (sendo já o filme de Resnais um emblema desse movimento em contexto francês). Nas suas peculiaridades formais e narrativas, os filme de Leos Carax, Paixões Cruzadas (1984), e Philippe Garrel, O Coração Fantasma (1995), surgem como herdeiros directos dessas “novas vagas”; o de Carax apresenta mesmo um título original que, no imaginário popular, resume o fulgor poético das histórias de amor: Boy Meets Girl (à letra: “rapaz encontra rapariga”),
Saúde-se também o reaparecimento de Buffalo ’66 (1998), de e com Vincent Gallo, filme fortemente castigado na altura do seu lançamento, de tal modo foi apropriado pelos arautos do “escândalo”: pela sua história passional perpassam os silêncios e mistérios, porventura a própria irrisão, que o impulso amoroso pode conter. Tudo isto sem esquecer a importância fulcral de Irène (2009), com o realizador Alain Cavalier a utilizar a sua pequena câmara de vídeo para elaborar uma memória da actriz Irène Tunc (1934-1972) com quem foi casado — uma demonstração muito real de que é possível ser-se radicalmente intimista através dos meios do cinema, recusando a obscenidade emocional da “reality TV”.
_____21 Fevereiro
DEUS SABE QUANTO AMEI (1958)
de Vincente Minnelli
7 Março
UMA LIÇÃO DE AMOR (1954)
de Ingmar Bergman
21 Março
IRÈNE (2009)
de Alain Cavalier
4 Abril
HIROSHIMA, MEU AMOR (1959)
de Alain Resnais
18 Abril
O CORAÇÃO FANTASMA (1995)
de Philippe Garrel
2 Maio
A MINHA NOITE EM CASA DE MAUD (1969)
de Eric Rohmer
16 Maio
BUFFALO ’66 (1998)
de Vincent Gallo
30 Maio
O MEDO (1954)
de Roberto Rossellini
6 Junho
DOLLS (2002)
de Takeshi Kitano
20 Junho
PAIXÕES CRUZADAS (1984)
de Leos Carax