domingo, janeiro 21, 2018

Para descobrir "Mudbound"

Mudbound/Lamas do Mississipi é um belo filme que corre o risco de ser castigo pelo seu "esquecimento" na temporada de prémios — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Janeiro), com o título 'A herança dos clássicos'.

É muito provável que Lamas do Mississipi, o magnífico filme de Dee Rees inspirado no romance Mudbound, de Hillary Jordan, venha a ser um dos títulos mais castigados pela agitação da chamada temporada de prémios. Porquê? Porque as expectativas de prémios não se estão a concretizar, augurando uma presença discreta nas nomeações para os Oscars.
A situação é tanto mais insólita quanto estamos perante um filme que reflecte de modo directo e incisivo um dos temas emblemáticos da actual conjuntura mediática. A saber: o racismo na história social dos EUA (neste caso, a partir das experiências de dois jovens do Mississipi, um branco, outro negro, combatentes da Segunda Guerra Mundial). Em boa verdade, uma das obras máximas da produção americana de 2017 — Detroit, de Kathryn Bigelow, sobre os motins que abalaram aquela cidade em 1967 — teve a mesma sorte: a sua subtileza temática e excelência narrativa foram esquecidas por todas as entidades responsáveis pelos prémios que têm estado a ser atribuídos.
Este apagamento dá que pensar. Fica-se com a sensação de, neste contexto, o cinema constituir uma peça secundária, meramente instrumental. Acima de tudo, celebram-se “temas”, esquecem-se os filmes. Na prática, as primeiras vítimas são objectos tão inteligentes e subtis como Lamas do Mississipi. O filme de Dee Rees consegue essa proeza rara de não tratar nenhuma personagem como porta-voz do que quer que seja, antes mostrando as profundas clivagens de uma sociedade em que a discriminação dos afro-americanos se detecta nos mais discretos gestos e rituais do quotidiano. Reencontramos, assim, a abrangência da visão social de clássicos como Elia Kazan ou Otto Preminger. Tempos difíceis: é mais fácil ser “panfletário” do que abraçar a herança de Kazan e Preminger.