Dois filmes portugueses encenam histórias de juventude, lutando por se colarem a algo de concreto do seu/nosso tempo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Dezembro), com o título 'Filmes e espectadores portugueses'.
Para além das suas diferenças internas, o cinema português sempre suscitou uma curiosa pergunta “sociológica”: até que ponto os filmes reflectem temas e problemas do próprio tempo em que foram gerados? Com a estreia simultânea de O Fim da Inocência, de Joaquim Leitão, e Verão Danado, de Pedro Cabeleira, o mínimo que se pode dizer é que somos mobilizados para uma mesma evidência, absolutamente contemporânea: o consumo de drogas pela juventude.
Claro que a própria formulação temática é discutível: que realidade recobrimos, ou julgamos definir, através dessa generalização simplista que é a palavra “juventude”? Acima de tudo, importa não exigir aos filmes que se definam como um daqueles debates televisivos, mais ou menos gritados, em que não se sai de abstracções pueris, irremediavelmente equívocas. Infelizmente, o programa narrativo de qualquer um dos novos filmes não propõe nada de muito consistente.
O imaginário simbólico de O Fim da Inocência provém mesmo das matrizes correntes de alguma ficção televisiva, de natureza “novelesca” (integrando, aliás, alguns dos seus rostos mais típicos). Estamos perante uma ficção de estereótipos, em que, desde a classe social ao perfil psicológico, cada personagem é quase sempre um “tipo”, não uma pessoa.
Verão Danado tenta contrariar esse modelo através da injecção de alguma pulsação de “reportagem”, como se a acumulação redundante de cenas idênticas correspondesse a algum tipo de intensificação dramática. Dir-se-ia que se confunde a repetição “documental” de situações com a criação de uma consistente estrutura narrativa — problema tanto maior quanto o trabalho específico dos actores parece procurar apenas uma esquemática sensação de “improviso”.
Escusado será dizer que estamos perante dois filmes que importa ver e pensar. Muito para além de qualquer dicotomia fácil (“bom/mau”), os filmes existem como acontecimentos do presente que com eles partilhamos: de forma reflectida ou reflexiva, vêm inscrever-se numa dinâmica social e cultural a que todos pertencemos (Verão Danado está mesmo a conseguir um significativo impacto internacional, tendo recebido uma menção especial na secção “Cineastas do presente” do Festival de Locarno).
Dir-se-ia que O Fim da Inocência e Verão Danado existem no cruzamento de uma vontade e um bloqueio: vontade de olhar o mundo (português) à sua volta, bloqueio de projectos a que falta um conceito sólido de narrativa. No fundo, enfrentam a mesma questão: como estabelecer alguma relação com os espectadores?