BALTHUS Thérèse Dreaming (1938) |
De que falamos quando falamos da percepção pública das imagens? Ou ainda: quando é que a vida pública das imagens bloqueia a vontade de conhecer? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Dezembro), com o título 'O actual clima sexual'.
Nestes tempos em que tudo se “globaliza”, sentimo-nos perturbados pelo que, estando longe de nós, afinal parece imiscuir-se no nosso quotidiano, baralhando evidências e certezas. Por exemplo, que está em jogo quando, dos EUA, surge uma petição contra a exposição de um quadro de Balthus (Thérèse Dreaming, 1938) nos salões do Metropolitan Museum of Art (MET)?
Sabemos que os protestos se “fundamentam” no facto de o quadro figurar uma jovem numa pose que contribui para uma visão “romântica” do voyeurismo, reduzindo as crianças a “objectos”. Os assinantes da petição (perto de 12 mil) argumentam que tal não se justifica tendo em conta “o actual clima em torno das agressões sexuais”.
REMBRANDT Auto-retrato (1652) |
Escusado será dizer que o episódio possui algum valor sintomático. E não apenas por causa do “actual clima” (refira-se que o MET recusou satisfazer a petição). Sobretudo porque as suas componentes são reveladoras de uma percepção muito frequente, porventura dominante, das imagens e da sua existência pública: em muitos circuitos de (des)informação, deixou de ter qualquer relevo o facto de haver uma história humana das imagens, das grutas de Lascaux às piscinas de David Hockney, passando pelos auto-retratos de Rembrandt — as imagens apenas existem em função dos efeitos “perniciosos” que alguém lhes possa atribuir.
Há em tudo isso uma renúncia existencial infinitamente mais perturbante que qualquer imagem. Porquê? Porque o que está em causa nada tem a ver com os jogos florais de “pureza” ou “impureza” que adquirem imediata visibilidade mediática. O que está em causa implica uma metódica desqualificação de qualquer gesto artístico, negando todas as componentes fantasmáticas da natureza humana, como se Shakespeare, Goya, Dostoyevski, Freud e Buñuel nunca tivessem existido — ou devessem ser interditos à nossa humaníssima vontade de conhecer.
Este é, afinal, o mesmo mundo em que o Big Brother e seus derivados televisivos todos os dias promovem uma visão grosseira, mecanicista e performativa da sexualidade (feminina e masculina), sem que se assista a grandes indignações da parte da classe política ou dos vigilantes dos bons costumes. No limite, podemos vir a ser forçados a renegar determinadas obras por causa das “associações” daquela mentalidade liofilizada. Alexandre Nevsky (1938), por exemplo — tendo em conta que o filme foi encomendado pelo líder comunista Josef Staline, responsável pelo genocídio de milhões de pessoas, devemos evitar qualquer contacto com a obra-prima de Sergei Eisenstein?
EISENSTEIN Alexandre Nevsky (1938) |