Efemérides?... Sim, ma non troppo. Em qualquer caso, há 50 anos o cinema era uma prodigiosa paisagem criativa de descoberta, invenção e reinvenção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Setembro).
Não tenho especial fixação no tratamento jornalístico das efemérides. Nada contra, entenda-se, mas creio que a evocação de um número redondo não basta para (re)inscrever o que quer que seja na nossa actualidade. Contraditoriamente o digo: ao longo de 2017, confesso, fui ficando siderado pela quantidade de filmes admiráveis que completaram 50 anos de existência.
Dir-se-ia que 1967 foi o ano em que o desmembramento dos modelos clássicos, a começar por Hollywood, foi acompanhado por uma espantosa profusão de experiências capazes de dar razão a um axioma mítico daquela década: tudo é (ou era) possível. Nos EUA, precisamente, foi o ano de Bonnie e Clyde, de Arthur Penn, A Primeira Noite, de Mike Nichols, e Adivinha Quem Vem Jantar?, de Stanley Kramer, filmes que, através das suas diferenças, apontavam para a necessidade de repensar a história, a mitologia e os valores sociais, numa urgência a que não podemos deixar de reconhecer uma perturbante actualidade simbólica.
Foi também o ano de Dont Look Back, de D. A. Pennebaker, documentário celebrando o “escândalo” das guitarras eléctricas nas canções de Bob Dylan, ou A Sangue Frio, de Richard Brooks, segundo o livro de Truman Capote, expondo as convulsões mais íntimas de uma América esquecida (actualmente a passar nos canais TV Cine & Séries).
Na Europa, Luis Buñuel assinava Belle de Jour, com Catherine Deneuve, por certo o mais genial filme de toda a história do cinema a lembrar-nos o que sempre tentamos esquecer: o real é apenas uma construção instável que, ingenuamente, por vezes estupidamente, tentamos validar através dos nossos desejos. Em Inglaterra, com Poor Cow, Ken Loach reabria as portas de uma nobre tradição realista, enquanto em França o sentido visionário de Jean-Luc Godard antecipava dramas e euforias de Maio 68 através de La Chinoise e Weekend. 1967 foi ainda o ano em que Blow-up, de Michelangelo Antonioni, ganhou o Festival de Cannes, numa competição em que estiveram também, por exemplo, Acidente, de Joseph Losey, Terra em Transe, de Glauber Rocha, e Mouchette, de Robert Bresson.
Não tenho nenhuma visão heróica da descoberta destes filmes que muito me marcaram (em boa verdade, muitos deles só os pude conhecer mais tarde). O certo é que o seu fulgor, ainda e sempre moderno, reflecte um tempo em que o cinema não dependia de ruidosas campanhas televisivas, muito menos da agitação pueril de clubes de fãs. O cinema, por mais estranho que isso possa parecer, existia através dos filmes. Nostalgia? Cinefilia.
>>> Trailer original de Bonnie e Clyde.