sexta-feira, dezembro 08, 2017

Abel Ferrara, um americano na Europa (2/3)

Abel Ferrara em Piazza Vittorio
Abel Ferrara regressou a Portugal para, no LEFFEST, apresentar os seus dois filmes mais recentes: Alive in France e Piazza Vittorio — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título '“Na Europa encontro compaixão e um sentido da cultura"'.

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[Elsinor]

Há cada vez mais filmes que as pessoas vêem “streaming”.
Absolutamente.

Será que se está a perder algo da relação clássica com o cinema?
Tenho sentimentos contraditórios. Não creio que seja uma questão de perda. E é verdade que, mesmo na Internet, se pode obter uma boa qualidade de imagem. No fundo, a questão é saber como é que o trabalho artístico pode continuar — como é que os fulanos que fazem filmes podem... continuar a fazer filmes. Porque, por vezes, as pessoas andam a roubar esses filmes que custaram dinheiro. E, no entanto, a Internet podia ser um grande elo ligação dos artistas com os espectadores, numa partilha planetária.

No seu caso, como é que vê filmes?
Quando venho a festivais, tento ver filmes. Vejo-os também no meu computador e, como dou aulas, vejo muitos filmes com os meus alunos — aproveito todas as oportunidades.

Recentemente, fez algumas boas descobertas?
Sim, sem dúvida. Serão, sobretudo, filmes que pouca gente viu, coisas como uma curta de 10 minutos feita por um miúdo de 19 anos que passou, algures, num festival... E tenho alunos que são mesmo muito bons. Além do mais, não vejo televisão, pelo que não estou a seguir todas essas séries que agora se fazem. Na verdade, o que faço mais é ler — faça-me perguntas sobre livros.

O que é que anda a ler?
Solzhenitsyn. Svetlana Alexievich — o livro dela sobre Chernobyl é qualquer coisa de poderoso.

E o seu novo filme, Piazza Vittorio, como é que o apresentaria?
É um documentário sobre a zona de Roma em que vivo: a Piazza Vittorio, perto de Santa Maria Maggiore, onde, em 1948, Vittorio De Sica filmou Ladrões de Bicicletas. É uma zona multi-étnica, um pouco à maneira de Nova Iorque, com muitos emigrantes, especialmente agora, vindos de África e da Europa de Leste, muitos deles vítimas de guerras terríveis. Digamos que tento fazer um pouco aquilo que faz Svetlana Alexievich: dar a palavra às pessoas, deixá-las falar.

[Vittorio De Sica]
Quer isso dizer também que decidiu viver na Europa?
Vim cá fazer um filme, encontrei Christina, tivemos um bebé (tenho uma menina com dois anos e meio) — a minha escolha é a Europa. Não compreendo o que está a acontecer nos EUA, especialmente em Nova Iorque, a “cidade que nunca dorme”, etc. Talvez tenha chegado ao meu limite, talvez precisasse de alguma mudança. É certo que ainda o mês passado estive lá a filmar... O ar tornou-se insuportável, a comida é péssima, os preços estão completamente fora de controle, a cidade foi entregue aos ricos, é uma espécie de recreio para os que querem roubar dinheiro ao mundo todo — está tudo bem se se tiver uma carrada de dinheiro, mas não é essa a minha cena.

Será que a “sua” Nova Iorque já não existe?
Nova Iorque muda todos os dias. Além do mais, eu sou do Bronx, que é outra Nova Iorque...

E o que é que encontra de tão especial na Europa?
Encontro compaixão, um sentido da cultura... As coisas aqui têm dois ou três mil anos; o meu país tem uma história de 300 ou 400 anos, está ainda a descobrir o que é ou pode ser. Aqui, não é a procura do lucro que comanda: encontro respeito pela vida, pelos lugares, de umas pessoas pelas outras. Em última instância, tem a ver com o modo como se coloca luz numa sala — quem iluminou esta sala fê-lo respeitando as pessoas que se vão aqui sentar.