sábado, dezembro 02, 2017

Abel Ferrara, um americano na Europa (1/3)

[FOTO: Nuno Pinto Fernandes / DN]
Abel Ferrara regressou a Portugal para, no LEFFEST, apresentar os seus dois filmes mais recentes: Alive in France e Piazza Vittorio — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título '“Na Europa encontro compaixão e um sentido da cultura"'.

Em Alive in France, surge com a sua banda de rock’n’roll — como é a sensação de estar frente à câmara?
É uma óptima sensação. Queria interpretar aquelas canções e reunir-me em palco com toda aquela malta, em especial o Joe Delia que há muito tempo compõe música para os meus filmes — são velhos amigos.

Na sua filmografia, há um título de ficção científica, Body Snatchers (1993), que se destaca pela sua produção. Que memórias guarda dessa experiência?
É verdade: era um filme de estúdio, da Warner Bros., e com um grande orçamento. Foi filmado em CinemaScope, numa rodagem longa, em Selma, Alabama, um lugar complicado. Fizemo-lo à maneira clássica, até porque tínhamos na história original de Jack Finney um excelente ponto de partida. Aliás, na altura já existiam duas versões da história, uma de Don Siegel (1956), uma verdadeira obra-prima, outra de Philip Kaufman (1978). Tentámos preservar uma certa estilização que vinha de Siegel — não foi fácil, mas o filme que existe corresponde àquilo que queríamos fazer.

Quando se trabalha com os grandes estúdios a liberdade criativa é menor?
Mais dinheiro pode implicar menos liberdade. Quando se trabalha com um grande estúdio, não se fala de “autores”. Apesar de tudo, convém lembrar que a Warner era o estúdio a que estava ligado Clint Eastwood. A margem de liberdade era grande, maior do que noutros estúdios e muito maior do que agora. Foi por essa altura que, também na Warner, Oliver Stone fez JFK e Spike Lee Malcolm X. Mas agora parece-me que não estão interessados em fazer mais filmes com realizadores de Nova Iorque...

Como definiria a situação actual?
Não posso abdicar da minha visão: trabalha-se em grupo e a visão tem de ser a do realizador — ponto final. Não vale a pena envolver ninguém que não reconheça essa base de trabalho: é uma comunidade e as ideias de todos são bem-vindas, mas o realizador tem direito à última palavra. Aliás, tem direito à primeira palavra e à última palavra.

E o que é que muda, ou não, quando faz filmes a partir de pessoas verdadeiras como Pasolini (2014) ou Welcome to New York (2014), inspirados em Pier Paolo Pasolini e Dominique Strauss-Kahn?
Quando estamos a fazer um filme, a única coisa que existe é o mundo de faz-de-conta que estamos a criar. O que quer que seja, ou foi, a realidade... Podemos filmar nos mesmos cenários, usar as mesmas roupas, mas o momento é outro. Não se trata de invocar o fantasma de Pier Paolo, ou seja de quem for...

Welcome to New York acabou por ser pouco visto, não tendo sido lançado em muitos países, incluindo Portugal. Terá tido influência a contemporaneidade da própria personagem?
Talvez. Mas há sempre outras questões, desde os problemas de distribuição até ao facto de haver muita gente que deixou de ir regularmente ao cinema. Há filmes que encontram logo a sua audiência, outros que demoram 50 anos a consegui-lo... Mas os filmes existem, estão aí — e quem quiser realmente vê-los, acaba por encontrá-los.

[continua]