FOTO: Sara Matos / DN |
Com o filme Sea Sorrow, Vanessa Redgrave propõe uma visão da situação actual dos refugiados com perguntas incómodas dirigidas, sobretudo, aos políticos do seu país. Como ela diz, importa não abdicar da intransigente defesa dos direitos humanos — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (1 Outubro), com o título '“Sinto-me furiosa quando vejo os políticos a mentir na televisão"'.
Vanessa Redgrave resiste a falar dos anos 60, mesmo reconhecendo que foi nesse período — em que fez filmes como Morgan – Um Caso para Tratamento, de Karel Reisz, Blow-up, de Michelangelo Antonioni, ou Um Homem para Eternidade, de Fred Zinnemann — que conheceu um requinte de produção que hoje considera perdido. Ao realizar Sea Sorrow (em exibição), assume um claro e veemente programa político: chamar a atenção para a dramática crise dos refugiados. Contou com a colaboração do seu filho Carlo Nero, produtor e realizador, e também de Alf Dubs, membro da Câmara dos Lordes que tem lutado pela criação de um novo enquadramento legal que favoreça a recepção de mais refugiados no Reino Unido. É um filme que se demarca do vazio informativo que, segundo Vanessa Redgrave, prevalece no espaço televisivo.
O filme Sea Sorrow [Cannes 2017] apresenta-se como um testemunho pessoal, muito forte, sobre a actual situação dos refugiados. Porque decidiu assumir também a realização?
Precisamente por isso, por ser tão pessoal.
Era importante escolher as imagens, os textos, controlar a montagem?
Absolutamente. Na verdade, é-me muito difícil falar do filme. Prefiro falar da situação que envolve refugiados e governos, daquilo que devia ser feito, do que tem sido feito, do que não se está a fazer. O filme é algo que criei com a assistência constante do Carlo [Nero] que, além do mais, possui a experiência decorrente dos muitos filmes que fez. Eu própria produzi muitos filmes, mas produzir é bem diferente. Em qualquer caso, creio que posso dizer que não segui uma receita.
Porquê o paralelo com as suas próprias memórias da Segunda Guerra Mundial [na foto: Vanessa Redgrave]?
No princípio, o projecto não envolvia as minhas memórias pessoais — esse aspecto surgiu mais tarde. Tratava-se de recordar que o governo britânico foi responsável pela recusa de vistos a dezenas de milhares de judeus, o que significou entregá-los a Hitler. A opinião pública queria que essa ajuda fosse consumada, foram os políticos que o impediram. No filme, há uma carta de Sylvia Pankhurst que, evocando os massacres de judeus na “Noite de Cristal”, em 1938, reflecte a agonia de muitos cidadãos perante o facto de os Negócios Estrangeiros terem recusado tantos vistos — no caso dela, o apelo envolvia duas raparigas que ela conhecia. Passei a minha vida a estudar tudo isso. Porquê? Porque, desde muito criança, sempre temi que se possa repetir. Agora, temos uma situação em parte semelhante: há também uma quantidade imensa de pessoas a tentar ajudar os refugiados, venham eles da Síria, Afeganistão ou Iraque... E o Iémen? O Iémen é um país destruído, fomos nós que ajudámos a destrui-lo.
Quando diz “nós”, refere-se a quem?
Os britânicos. E a Europa, por certo. Mas estou a falar especificamente dos britânicos que venderam armas à Arábia Saudita, permitindo que a Arábia Saudita destruísse o Iémen. Leio informações sobre isso quase todos os dias. Vejo pouca televisão, porque a televisão são coisas de uns breve segundos, não trata de notícias importantes. Leio muito online: o Financial Times, que é o nosso jornal de folhas “cor-de-rosa”, o Haaretz, um jornal progressista de Israel que tem uma edição diária em inglês, e as “newsletters” dos Médicos sem Fronteiras e de uma ONG italiana de nome Emergency.
Acredita que o cinema, e o seu filme em particular, pode desempenhar um papel importante nessa divulgação de informação?
Sim, mas os filmes dependem muito da distribuição. Digamos que é a segunda parte da vida de um filme: será que conseguirá ser distribuído? Depois, esperamos que as pessoas que vão ver esse filme poderão, por algum tempo, repousar a mente e ponderar aquilo que viram — acho que é uma boa palavra, ponderar, tal como ponderação. Isto tendo em conta que os nossos políticos não prestam, são inúteis, com algumas honrosas excepções — sendo Alf Dubs, com o seu notável trabalho, uma dessas excepções.
É muito céptica face ao exercício da política?
Não, não sou — sou realista. Não temos um único partido político que, na sua plataforma, tenha assumido a defesa dos direitos humanos como coisa vital e essencial que deve ser implementada em todas as circunstâncias, para questões domésticas ou internacionais. Mesmo não esquecendo que temos pessoas decentes nos principais partidos. Ora, do meu ponto de vista, isto é uma situação perigosa.