A exibição do filme 12 Jours, de Raymond Depardon, fica como um dos momentos altos da 18ª edição da Festa do Cinema Francês — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (14 Outubro), com o título '“É preciso olhar as coisas que não queremos olhar"'.
Raymond Depardon é um dos mais bem guardados segredos do cinema francês: grande fotógrafo do nosso tempo, membro da agência Magnum há quase quatro décadas, é também um cineasta de subtil visão documental. 12 Jours, o seu filme mais recente (apresentado em Cannes, extra-competição), constitui um dos grandes acontecimentos da 18ª edição da Festa do Cinema Francês — dia 15 (19h30), no São Jorge, em Lisboa; dia 28 (19h30), no Rivoli, no Porto.
O projecto só foi possível graças ao apoio da Escola Nacional da Magistratura de Bordéus: “Se tivéssemos tentado fazer este filme em Paris, acho que não teríamos conseguido.” Porquê? Antes do mais, porque essa instituição recorre com regularidade a outros filmes do próprio Depardon, como Délits Flagrants (1994) ou 10e. Chambre (2004), sobre o funcionamento dos tribunais. Depois, porque aí encontrou a disponibilidade para documentar o modo como a lei lida com a loucura ou, mais exactamente, os pacientes que, sem o seu consentimento, foram hospitalizados em unidades de psiquiatria: “A magistratura tem-se escudado na ideia de que os loucos têm também direito à sua imagem. Nessa medida, duplicaram o sistema vigente nas prisões, o que, para todos os efeitos, é outra questão: na prisão, as pessoas perderam os direitos cívicos, o que não acontece no caso das personagens de 12 Jours — podem até votar e a sua assinatura é reconhecida como válida.”
Que está, então, em jogo? Precisamente os 12 dias que o título refere: de acordo com a legislação francesa, o internamento compulsivo é avaliado nesse período de tempo por um juiz que, tendo em conta os relatórios dos médicos, decide da eventual continuação desse internamento, determinando se a libertação do paciente envolve algum tipo de perigo (para os outros ou para si próprio).
Não é um filme de “suspense”, mas um estudo humanista. Depardon recorda a sua singular pedagogia: “Das 72 pessoas que filmámos, nenhuma obteve autorização para sair em liberdade. Talvez que o efeito positivo daquelas audiências tenha decorrido da própria presença do cinema, como se se dissesse a cada paciente: “ao ser filmado, você está a ser considerado”. Em qualquer caso, era algo que lhes fazia bem — mais do que uma consideração, um reconhecimento da sua existência”.
Como noutros momentos da sua trajectória (por exemplo, nos anos 70, quando fotografou um asilo em Itália), Depardon sabia que teria de enfrentar a acusação de “voyeurismo”. De facto, o que está em jogo é bem diferente e pode resumir-se no seu axioma profissional e ético: “É preciso olhar as coisas que não queremos olhar”. Aliás, acrescentando uma interrogação contundente, também ela muito pedagógica: “Porque é que as pessoas não falam de voyeurismo a propósito de tantas coisas que se vêem todos os dias na televisão?”
12 Jours foi também uma estreia técnica: pela primeira vez, Depardon utilizou câmaras digitais, equipadas com grandes e sofisticadas objectivas (apenas disponíveis através de aluguer a empresas de Los Angeles). E também não foi surpresa ouvir o espanto de algumas pessoas que recomendavam que filmasse com câmaras mais pequenas, ainda que de menor qualidade. “Já me tinham sugerido a utilização de um formato rudimentar quando filmei os ciganos em Profils: Paysans (2001-2008). Devo reconhecer que, curiosamente, quando se trata de ciganos ou loucos, há sempre quem ache que se deve filmá-los com um formato de menor qualidade. Ora, a minha perspectiva é completamente diferente: é preciso filmar aquelas pessoas da melhor maneira possível, como se fossem Brad Pitt ou Isabelle Adjani.”