sábado, outubro 28, 2017

Quem se lembra de Elia Kazan?

O título final da filmografia de Elia Kazan chegou, finalmente, ao DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro).

Um aspecto desconcertante das “sociedades de informação” em que vivemos é a paradoxal cumplicidade entre informação, precisamente, e ausência de conhecimento — como se a acumulação de dados gerasse uma perversa desvalorização da memória e da interpretação do passado. Observe-se o modelo publicitário do jovem sempre ocupado com telemóvel e uma infinidade de “gadgets”, mas ignorando a história da humanidade. Nos concursos televisivos, tornou-se mesmo normal reagir a um tema do passado com uma frase patética: “Nessa altura ainda não tinha nascido”. Mozart? Rembrandt? Eça de Queiroz? Que pena, ainda não tinha nascido...
Elia Kazan
(1909-2003)
Questão vasta, sem dúvida, de uma só vez cultural e política — e para a qual não temos tido política cultural, de direita ou esquerda, que arrisque enfrentá-la. No caso do mercado cinematográfico, há um nicho que funciona como esclarecedor sintoma. Assim, a oferta de filmes em DVD (incluindo o Blu-ray) passou a integrar muitos títulos clássicos, mais ou menos “antigos”. Magnífico! Em todo o caso, a indiferença mediática pelo cinema como património faz com que, socialmente, o mundo dos filmes pareça existir apenas em função do “blockbuster” que anda a ser promovido há três meses...
Questão de nicho, repito. Mas o detalhe reflecte os movimentos do todo. Exemplo actual: o lançamento em DVD de O Grande Magnate (1976), de Elia Kazan. Escusado será dizer que, mesmo sendo um inédito em DVD, assinado por um nome incontornável na história de Hollywood, não foi assunto de manchetes. Fica, em qualquer caso, a pergunta: na saturação de imagens que habitamos, quem conserva alguma memória da obra imensa e convulsiva de Kazan?
Estamos, convém lembrar, perante um filme cujo elenco integra nomes como Robert De Niro, Jack Nicholson, Jeanne Moreau, Tony Curtis e Robert Mitchum. Mais do que isso, O Grande Magnate é a adaptação de The Last Tycoon, o romance inacabado de F. Scott Fitzgerald tendo por cenário os bastidores da idade de ouro de Hollywood.
Leio na capa do DVD que a personagem central do produtor Monroe Stahr (De Niro) é uma “caricatura disfarçada de Irving Thalberg, um dos produtores da MGM”. Curiosa visão, não apenas do filme, mas do próprio mundo do cinema. Não há nada de caricatural em Kazan (muito menos em Fitzgerald): esta é uma visão eminentemente trágica da “fábrica de sonhos”, pontuada pelo mais gélido desencanto romântico. Seria a derradeira realização de Kazan (faleceu em 2003, contava 94 anos), simbolicamente encerrando o classicismo de Hollywood.