The Hollywood Reporter |
O produtor Harvey Weinstein foi expulso da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A decisão, tomada pelo 'Board of Governors' (colectivo dirigente que, entre os seus 54 membros, inclui Steven Spielberg, Tom Hanks, Whoopi Goldberg, Kathleen Kennedy e Michael Mann) surge na sequência da divulgação de episódios de assédio sexual por parte de Harvey Weinstein a dezenas de mulheres (decisivo no processo de revelações das últimas duas semanas foi um artigo publicado pelo New York Times). A decisão da Academia ocorre seis dias depois de Harvey Weinstein ter sido despedido da sua própria empresa, The Weinstein Company — o comentário que se segue foi lido na Antena 1 (14 Outubro).
Hollywood está a viver uma tragédia que bem podia ser assunto de um dos seus muitos filmes de auto-crítica — aliás, não nos admiremos que, um dia destes, se produza mesmo um filme sobre a ascensão e queda de Harvey Weinstein.
Escusado será dizer que os actos de assédio de que Weinstein é acusado revelam um sinistro menosprezo pelas mulheres e pelo universo feminino.
Mas não é fácil falar do assunto. Sobretudo não me parece fácil — aliás, não me parece adequado — falar dele como se fosse apenas um episódio revelador dos bastidores de Hollywood.
Acontece que, apesar de tudo, algo mudou nos valores e nas instituições. Ao assumir a decisão de expulsar Weinstein, a Academia não está a fazer um juízo de valor global sobre Hollywood — está, creio eu, a reflectir uma evolução social que, com mais ou menos contradições, envolve a condenação de todos os comportamentos machistas contra as mulheres.
Seja como for, não é possível apagar a ligação do nome de Weinstein a dezenas de títulos fundamentais na história moderna do cinema americano, incluindo, por exemplo, Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, O Paciente Inglês, de Anthony Minghella, e Gangs de Nova Iorque, de Martin Scorsese.
Agora, ficámos a conhecer o lado mais sombrio do produtor desses filmes, mas os filmes são mais fortes do que o seu produtor.
A trajectória de Harvey Weinstein condensa uma espécie de utopia de produção: ele foi o mago dos independentes que acabou por conquistar um estatuto de igualdade com os grandes estúdios de Hollywood — este breve perfil foi publicado no Diário de Notícias (13 Outubro), com o título 'A saga da produção independente'.
Estamos confrontados com mais um dramático paradoxo da história e da mitologia do cinema: Harvey Weinstein deu entrada na galeria da infâmia de Hollywood depois de ter ocupado um lugar central, profundamente influente, na saga da produção independente das últimas décadas. Em boa verdade, a designação é, também ela, paradoxal: sempre em aliança com o irmão, Bob Weinstein, ele ajudou a definir os parâmetros de uma produção independente capaz de atrair e integrar nomes que pertencem à “lista A” de Hollywood.
Ao criarem a companhia de distribuição Miramax, em 1979, os irmãos Weinstein superaram as fronteiras tradicionais dos independentes encerrados num nicho sem comunicação com as outras componentes do mercado. Em 1989, Sexo, Mentiras e Vídeo, de Steven Soderbergh, terá sido o símbolo exemplar da sua estratégia, com o jovem Soderbergh (26 anos) a arrebatar a Palma de Ouro em Cannes.
A consolidação da Miramax passou, assim, antes do mais, pelo apoio a valores emergentes nos EUA: Quentin Tarantino poderá ser o símbolo exemplar, mantendo-se ligado aos Weinstein desde a estreia na realização com Cães Danados (1992); aliás, com ele, a companhia conseguiu uma das suas vitórias mais espectaculares, ganhando nova Palma de Ouro, em 1994, com Pulp Fiction. Ao mesmo tempo, a Miramax apostou na distribuição de valores fortes do cinema internacional nas salas americanas, incluindo Peter Greenaway (Os Livros de Próspero, 1991), Jane Campion (O Piano, 1993) ou Danny Boyle (Trainspotting, 1996).
Em qualquer caso, a Miramax foi-se transfigurando a partir de 1993, quando foi adquirida pelos estúdios Disney. O sucesso de Pulp Fiction é já desse período, tal como o triunfo nos Oscars de O Paciente Inglês (1996), de Anthony Minghella, e A Paixão de Shakespeare (1998), de John Madden. Em 2005, os irmãos Weinstein decidiram abandonar a Miramax, fundando The Weinstein Company.
Actualizando a lógica da Miramax, a nova companhia foi construindo um catálogo em que Tarantino permaneceu como nome fundamental, através de sucessos como Sacanas sem Lei (2009) e Django Libertado (2012). Integram esse catálogo vários filmes de prestígio, alguns “oscarizados”, com destaque para O Sonho de Cassandra (2007) e Vicky Cristina Barcelona (2008), ambos de Woody Allen, O Discurso do Rei (2010), de Tom Hooper, ou Paddington (2014), a popular comédia britânica de Paul King. Na prática, The Weinstein Company conseguiu recuperar o cognome que já pertencera à Miramax: o “maior dos pequenos” estúdios de Hollywood.
>>> Sobre Harvey Weinstein [notícias e artigos de opinião]: The New York Times + The Washington Post.
>>> Sobre Harvey Weinstein [notícias e artigos de opinião]: The New York Times + The Washington Post.