Um grande filme português, nacional e internacional, regional e universal — texto disponível no site do Diário de Notícias.
Chega finalmente às salas escuras o filme de Pedro Pinho, produzido pela Terratreme, A Fábrica de Nada. Nos últimos meses, mais precisamente desde Maio — quando ganhou um prémio FIPRESCI (crítica internacional) no Festival de Cannes —, tem sido o mais activo embaixador do cinema português no estrangeiro.
Magnífico paradoxo: o impacto internacional de A Fábrica de Nada enraíza-se, afinal, na sua dimensão visceralmente portuguesa. Como tem sido amplamente divulgado, nele se conta uma história que ecoa as mais recentes convulsões económicas vividas no nosso país. Tudo acontece, de facto, numa fábrica “assaltada” pela própria administração, retirando máquinas e matérias primas das instalações — adivinhando uma vaga de despedimentos, os trabalhadores decidem permanecer nos seus postos, tentando encontrar soluções para vencer o “nada” em que a situação ameaça desembocar...
O filme foi escrito por Pedro Pinho, Luísa Homem, Leonor Noivo e Tiago Hespanha, a partir de uma ideia de Jorge Silva Melo (decorrente da sua encenação da peça A Fábrica de Nada, de Judith Herzberg). Através do cruzamento de actores e não actores, assistimos, afinal, a um verdadeiro processo de interrogação, com o seu quê de “jornalístico”, de uma realidade complexa e multifacetada. E as perguntas que emergem são tão directas quanto incontornáveis. Que significa trabalhar? Quais as relações entre trabalho e dinheiro? Como viver num tempo que transformou trabalho e dinheiro em índices perturbantes de uma crise omnipresente?
Muito se tem falado do facto de, em determinado momento, A Fábrica de Nada se “desviar” para um registo musical, com as personagens a cantar e dançar. Em boa verdade, tal informação peca por simplismo. As matérias musicais são apenas um exemplo do jogo de contrastes que o filme ensaia, confrontando o tom “militante” de algumas cenas com o delírio surreal de outras, contrapondo o registo quase documental de certos momentos à assumida teatralidade de outros.
Tudo Vai Bem (1972), de Jean-Luc Godard, uma admirável reflexão sobre as mágoas herdadas de Maio 68, poderá ter sido (ou não) uma inspiração remota para o dispositivo de A Fábrica de Nada. Não se trata de encontrar “modelos” para um filme suficientemente ágil e inteligente para construir a sua própria linguagem. O certo é que há um paralelismo que faz sentido evocar: em ambos os casos, somos confrontados com a urgência dos problemas sociais e, ao mesmo tempo, com a necessidade, de uma só vez estética e política, de repensar os modos de tratamento cinematográfico de tais problemas.
A Fábrica de Nada é, enfim, um filme sobre a dificuldade de olharmos e compreendermos o mundo à nossa volta: o que nele acontece não se esgota num relatório “objectivo”, já que com ele percebemos que as imagens (e os sons) não reproduzem o mundo, antes o recriam de forma mais ou menos singular, eventualmente gerando novas hipóteses de olhar, sentir e pensar. Nessa medida, este é o mais político dos filmes. Porquê? Porque dispensa a retórica dominante na cena política, ousando celebrar o prazer de ver (e escutar) através do cinema.