1. Na sequência das discussões públicas surgidas em torno de duas edições de "Blocos de Actividades", uma "para meninas", outra "para rapazes", a Porto Editora suspendeu a respectiva venda, manifestando em comunicado a sua disponibilidade democrática para analisar a situação: " (...) a Porto Editora reafirma que as edições em causa não foram trabalhadas sob qualquer perspetiva discriminatória ou preconceituosa, a qual é absolutamente contrária aos valores que norteiam a sua atividade editorial desde sempre."
2. Na candura com que enfrentou esta encruzilhada cultural e comercial, a Porto Editora acaba por contribuir, inadvertidamente, para reforçar o primarismo pedagógico e a cegueira biológica que puseram em marcha esta campanha contra tão castas edições.
3. Vivemos num país em que os olhos e os ouvidos das crianças são todos os dias agredidos por modelos formatados que estiolam a sua imaginação narrativa (telenovela) ou pervertem qualquer saudável educação sexual (reality TV). Em todo o caso, há décadas — sublinho: décadas — que não ouvimos um pedagogo, muito menos um político, a levantar a mais tímida dúvida sobre o matraquear quotidiano de tais objectos. Seja como for, uns caderninhos azuis, outros cor de rosa, são motivo duma agitação completamente deslocada.
4. Não se pede aos nossos pedagogos e políticos que conheçam a obra de Camille Paglia, em particular a sua desmontagem dos fundamentalismos feministas e outros que têm contribuído para esquecer que, de facto, existem sexos e diferenças sexuais (leia-se o recente Free Women, Free Men) — até porque, sejamos claros, Paglia será tudo o que cada um entender, menos uma personalidade para gerar consensos. Em qualquer caso, mais de um século depois de Sigmund Freud ter publicado os seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, a liofilização daquelas diferenças tende a reduzir a sexualidade humana — infantil ou não — a uma espécie de programa abstracto que podemos gerir com um "like" ou um "dislike", à maneira do Facebook.
5. A importância social, cultural e simbólica da defesa da igualdade de géneros surge, assim, diminuída. Porquê? Porque se transforma (em nome de quê?) num douto policiamento dos comportamentos, no limite como se cada criança fosse um projecto de identidade (gerido pelos adultos) que pode ser pensado como "liberto" das diferenças sexuais. Assistimos, assim, ao reforço de uma visão de histérico proteccionismo das crianças — corremos o risco de não as deixarmos viver, ignorando-as como seres de muitas diferenças, por fim olhando-as e tratando-as apenas como vítimas. De quê? Do sexo e dos malignos blocos de actividades.