1. A notícia é conhecida: um tema novo de Chico Buarque, Tua Cantiga, tem sido objecto de muitas condenações, em particular de acusações de machismo, com especial intensidade nas chamadas "redes sociais", devido a um fragmento da sua letra [O Globo]. A saber:
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.
2. Para resumir, lembro apenas que, paralelamente a tão triste simplismo, nem tudo é um deserto de ideias. Assim, têm proliferado também as manifestações de solidariedade com o veterano artista brasileiro. E acrescento que me incluo entre aqueles que, através de tal solidariedade, consideram esta polémica (?) um triste exemplo da mediocridade humana que encontrou acolhimento — e uma sinistra câmara de eco — nesses espaços "sociais".
3. Em todo o caso, peço licença para contrapor uma visão diferente da que encontrei expressa em muitos discursos de apoio a Chico Buarque. Ou seja: quando se considera que a condenação de Tua Cantiga decorre de um pensamento anquilosado sobre a criação artística e as relações homens/mulheres, creio que se passa ao lado do problema.
4. Porquê? Porque não há pensamento.
5. Considero mesmo que o poder crescente, e crescentemente assustador, deste tipo de utilização das "redes sociais" sai todos os dias reforçado quando, nem que seja por distracção, as suas práticas são encaradas e tratadas em termos de confronto de pensamento.
6. A maioria dos discursos que circulam em tais plataformas ignora o conceito de confronto — a única coisa que tais discursos procuram é o conflito.
7. Assistimos mesmo à insidiosa instalação da ideia (?) segundo a qual o "social" só se manifesta — em última instância, só existe — se for conflitual.
8. Face ao discurso poético de Chico Buarque, o único efeito que se procura é o estabelecimento de alguma ligação (um link, sem dúvida) que possa gerar conflito e multiplicar-se de forma viral. Os "autores" de semelhantes proezas são mesmo incensados, não pelo pensamento que enunciam, apenas porque as suas "intervenções" se podem quantificar em links, likes ou qualquer outra medida pueril, alheia a qualquer tipo de responsabilidade social.
9. Escusado será dizer que, num espaço "social" desta natureza, lavra uma desmesurada ignorância sobre as especificidades do discurso artístico — que, aliás, se apoia num desconhecimento total de quaisquer referências históricas das práticas artísticas.
10. Fomos condenados a viver com isto. Podemos, em todo o caso, ver e escutar Chico Buarque a cantar Tua Cantiga. Nada nos impede disso — ainda não.