A reposição de dois filmes de Jacques Demy é o grande evento cinéfilo deste Verão do nosso descontentamento — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Agosto), com o título 'Quando a música é uma forma de erotismo'.
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Em boa verdade, já havia música em Lola, incluindo a célebre canção-tema interpretada por Anouk Aimée. O seu compositor, Michel Legrand, acabaria por ser uma personalidade decisiva na consolidação do cinema de Demy, compondo, justamente, as bandas sonoras de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo e As Donzelas de Rochefort.
O que distingue o primeiro filme das matrizes tradicionais do musical é a sua estrutura recitativa. Não encontramos as habituais “interrupções” da acção para que, através do canto, eventualmente da dança, os actores interpretem um “número” autónomo. Um pouco à maneira da ópera, todos os diálogos são cantados, transformando a acção num fascinante “coral” que está longe de ser historicamente abstracto: o romance do par central, interpretado por Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo, está mesmo dramaticamente marcado pelo facto de ele ser mobilizado para combater na guerra da Argélia.
MICHEL LEGRAND |
Os amores e desamores das personagens centrais são de novo encenados através de uma narrativa exuberante em que a música (incluindo a dança) desempenha um papel nuclear. Explicitando as suas raízes criativas, Demy convidou dois americanos a integrar o elenco: o mestre Gene Kelly e George Chakiris (que, em 1961, contracenara com Natalie Wood em West Side Story). Com grande parte das sequências rodadas nas ruas e praças da cidade de Rochefort, o filme persiste como um dos mais perfeitos objectos de toda a história do musical. A sua contagiante felicidade teria como contraponto um acontecimento trágico: no Verão de 1967, cerca de três meses depois da estreia, Françoise Dorléac faleceu num acidente de automóvel.