Charlize Theron é o trunfo mais forte de Atomic Blonde, filme em que também se envolveu como produtora — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Agosto), com o título 'Charlize Theron em tom furioso'.
Pergunta de algibeira: quem é o novo James Bond? Não, não se trata de saber se Daniel Craig vai ou não regressar no 25º título oficial de 007 (já anunciado para 2019). Trata-se, isso sim, de perguntar onde está a personagem capaz de desafiar a mitologia do lendário agente secreto — aqui e agora, nestes tempos dominados por super-heróis mais ou menos digitais.
Pois bem, para encontrarmos a resposta teremos de fazer um pequeno desvio em relação aos nossos hábitos de consumo, contrariando algumas ideias enraizadas em velhos preconceitos machistas. Acontece que quem desafia, agora, o prestígio do mais célebre consumidor de martinis é uma mulher, dá pelo nome de Lorraine Broughton, trabalha para os serviços secretos britânicos (tal como Bond!) e domina o filme Atomic Blonde (estreia quinta-feira, dia 10).
James Bond no feminino? De facto, nada é tão simples. Para compreendermos esta reencarnação do conceito clássico de espião, necessitamos de ter em conta a metódica ascensão da brilhante intérprete de Broughton. A saber: Charlize Theron, senhora de serena elegância, nascida há 41 anos na África do Sul, com dupla nacionalidade (cidadã americana desde 2007) e, por estes dias, figura central no firmamento de Hollywood.
Theron conseguiu superar o assombramento típico de uma trajectória profissional iniciada como modelo. Não seria a primeira vez que alguém com uma imagem construída no mundo da moda entrava na grande máquina do cinema americano para se perder em papéis mais ou menos decorativos de filmes de série B. Convenhamos que o cliché a ameaçou, tendo começado por A Revolta dos Filhos da Terra (1995) e O Vale da Intriga (1996)... O certo é que entre 1996 e 1998 integrou o elenco de Tudo por um Sonho, de e com Tom Hanks, contracenou com Al Pacino e Keanu Reeves em O Advogado do Diabo, de Taylor Hackford, enfim, numa espécie de perversa auto-crítica, assumiu a personagem de uma “supermodel” em Celebridades, de Woody Allen, filme de delirante e sofisticado elenco em que se cruzavam, entre muitos outros, Kenneth Branagh, Winona Ryder e Leonardo DiCaprio.
Monstros & Cª.
Dois acontecimentos paradoxais iriam inflectir a carreira de Theron. Porquê paradoxais? Porque, justamente, se relacionam de modo bem diferente com a sua imagem de sofisticação e elegância.
O primeiro ocorreu em 2003, através do filme Monstro, de Patty Jenkins, e ilustra um dos riscos mais radicais que uma actriz (ou actor) pode assumir. Assim, ao interpretar a figura verídica de Aileen Wuornos (1956-2002), uma “serial killer” da Florida, Theron sujeitou-se a uma impressionante transfiguração física, monstruosa como o título bem esclarece, indissociável das perturbantes componentes psicológicas da personagem. Resultado: o Oscar de melhor actriz. Com um pormenor nada secundário: foi a primeira vez que Theron se envolveu na produção de um filme, através da sua companhia Denver and Delilah Productions.
Em 2004, um segundo evento, daqueles cuja importância simbólica é muitas vezes recalcada em nome de um discutível pudor mediático, Theron (re)entrou no imaginário popular como signo absoluto do charme: a sua condição de protagonista da publicidade de um perfume da marca Dior fê-la aceder, afinal, a uma galeria de ícones a que também pertencem Marilyn Monroe, Elizabeth Taylor, Angelina Jolie ou... Brad Pitt.
Ironicamente, a sua primeira tentativa para assumir uma heroína do cinema de aventuras saldou-se por um rotundo falhanço comercial: Aeon Flux (2005), uma saga futurista recheada de elementos espirituais, não teve impacto nem descendência. As melhores performances de Theron foram surgindo em produções relativamente marginais como North Country – Terra Fria (2005), de Niki Caro, que lhe valeu uma segunda nomeação para o Oscar, ou Jovem Adulta (2011), de Jason Reitman. Até que, em 2015, a sua composição em Mad Max: Estrada da Fúria, de George Miller, a inscreveu definitivamente na galeria de heróis, aliás, heroínas do cinema do séc. XXI — para que não restassem dúvidas, a sua personagem chamava-se Imperator Furiosa.