sábado, agosto 05, 2017

As palavras de James Baldwin

JAMES BALDWIN
(1924-1987)
Como é que as palavras são mostradas no cinema? Eu Não Sou o Teu Negro, agora em DVD, é um óptimo pretexto para relançar tal interrogação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Julho).

A chegada do filme Eu Não Sou o Teu Negro ao mercado do DVD é um bom pretexto para relançar uma reflexão sistematicamente recalcada no espaço audiovisual. A saber: como é que a nossa percepção das imagens (e sons) do passado se apresenta condicionada pela utilização narrativa de uma voz off?
Não é uma questão abstracta. É mesmo, no espaço televisivo, uma matéria de todos os dias. A esmagadora maioria de notícias e trabalhos documentais confia na voz off para transmitir aquilo que é assumido como uma verdade dos factos narrados. Não está em causa que tal prática seja aplicada de forma sóbria e inteligente nas mais diversas matrizes jornalísticas. O certo é que tal modelo não tem nada de universal, muito menos de obrigatório. Veja-se, por exemplo, a secção “No comment”, no canal Euronews, fundada, precisamente, no princípio de apresentar as matérias de reportagem sem qualquer comentário em off — sem esse comentário, a nossa percepção das imagens (e sons) é sempre diferente.
Em Eu Não Sou o Teu Negro, o realizador Raoul Peck recorda o modo como o escritor James Baldwin (1924-1987) abordou três líderes afro-americanos — Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. —, todos assassinados na década de 60, no espaço de cinco anos. Lidas pelo actor Samuel L. Jackson, as palavras escritas por Baldwin surgem assim, em off, como algo mais do que uma “descrição” das convulsões políticas, nomeadamente a luta pelos direitos civis, que os materiais de arquivo ajudam a revisitar. São testemunhos de um tempo que, através da elaborada montagem do filme, nos levam a avaliar a distância temporal e a proximidade simbólica dos factos evocados.
Tal dinâmica dá a ver, em particular, alguns emblemáticos fragmentos do próprio Baldwin em entrevistas televisivas. Por uma vez, acedemos às memórias do pequeno ecrã não como “ilustração” do passado, antes como matérias através das quais a história se faz e refaz, numa permanente reconversão dos papéis individuais e colectivos.
Eu Não Sou o Teu Negro surgiu nas salas portuguesas no passado dia 18 de Maio, tendo cumprido uma carreira discreta. Entre as estreias do mesmo dia, o vencedor das bilheteiras foi Alien: Covenant, o regresso de Ridley Scott às histórias de terror galáctico. Porquê tal diferença? Convém lembrar que o filme de Scott (belo espectáculo, não é isso que está em causa) foi lançado em 71 ecrãs do mercado, enquanto Eu Não Sou o Teu Negro ocupou apenas três... Como diria uma personagem de Billy Wilder, isso é outra história.