PIERRE BONNARD Auto-retrato 1889 |
1. Deixou de ser um acidente. Passou a ser um comportamento normalizado. Mais do que isso: ilustra uma forma de cultura que, como todas as formas de cultura, envolve uma percepção específica da identidade do outro.
2. Que acontece, então? Proliferam os emails provenientes de entidades — ditas agências de comunicação — que promovem determinados produtos, na área do audiovisual em particular, tratando-me por "tu" (sem esquecer que eu sou apenas um dos destinatários do colectivo de endereços que gerem). Umas vezes são assinados por homens, outras por mulheres; em qualquer caso, são pessoas que, pura e simplesmente, não conheço — convém, aliás, começar por lembrar que, na era das "amizades" virtuais, ter acesso ao endereço de email de alguém ainda não é uma forma de conhecimento, nem sequer banalmente social, dessa pessoa.
3. Que está a acontecer, realmente? Porque é tais pessoas consideram que podem, ou devem, tratar-me por "tu"?
4. Bem sei que a minha interrogação será lida na maioria dos casos como banal afirmação de autoridade etária ("olha ele ofendido..."). E, humildemente reconheço, não será fácil superar o maniqueísmo de tal visão.
5. Arrisco, de qualquer modo. É verdade que, apesar do meu interesse, estudo e máximo respeito pela cultura anglo-saxónica, ainda não me sinto obrigado a transpor para o português a gramática da língua inglesa. Dito de outro modo: a globalização do "you" não me leva a sentir-me obrigado a lidar com o meu semelhante através de um compulsivo "tu".
6. Em todo o caso, não vejo este infantilismo obrigatório do "tu" como uma banal falta de respeito. Em boa verdade, é muito pior do que isso: esse "tu" triunfante transporta uma brutal indiferença pelo outro.
7. Porquê indiferença? Porque a ilusória proximidade do "tu" pressupõe — ou quer impor — a ideia de que falamos a mesma linguagem.
8. Ora, seria importante que os homens e as mulheres que trabalham nas ditas tarefas de comunicação começassem por perceber uma lei básica da própria comunicação. A saber: podemos utilizar a mesma língua, mas isso não quer dizer que nos reconheçamos nas mesmas linguagens.
9. Ou ainda: não é porque decidem tratar-me por "tu" que eu passo a aplicar (muito menos sou obrigado a aplicar) as mesmas linguagens para falar, escrever ou pensar sobre os produtos que querem promover.
10. Pela evolução dos costumes — entenda-se: das linguagens —, sou mesmo levado a deduzir que os homens e as mulheres que nos tratam por "tu" consideram que os outros, a começar pelos jornalistas, só podem encarar os filmes ou as séries de televisão que promovem como produtos definidos a partir das regras que eles aplicam. Como chegaram a tão simplista visão? Valeria a pena trabalharem um pouco para compreender o mundo plural das linguagens e respectivas especificidades, nomeadamente as singularidades dessa velha arte de comunicação que se chama jornalismo — encore un effort...