quinta-feira, junho 22, 2017

Os retratos sem som de Gérard Courant

Gérard Courant é um caso extremo, e extremamente original, de cinema experimental — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 Junho).

De que falamos quando falamos de cinema experimental? Algumas das respostas mais singulares, desconcertantes e sedutoras poderão estar na obra do francês Gérard Courant (nascido em Lyon, em 1951). Até sexta-feira, dia 23, vários exemplos da sua longuíssima filmografia podem ser vistos na Cinemateca, num ciclo que ele próprio acompanha.
Na informação sobre o ciclo, a Cinemateca apresenta uma eloquente estatística. Assim, desde 1970, utilizando os mais variados suportes, Courant assinou nada mais nada menos que “mil e dezanove filmes, dos quais trezentas e duas longas-metragens, num total de quase oitocentas horas de cinema” (ele próprio disponibilizou muitos dos seus trabalhos na Net, em dois canais do YouTube: “Gérard Courant” e “Billy Schneider”).
Se mais razões fossem necessárias, Courant seria um criador à parte pelo simples (?) facto de ser o autor de Cinématon, habitualmente citado como “o filme mais longo da história do cinema”, totalizando 198 horas — e, atenção, mantendo-se como um “work in progress”.
Que faz, então, Courant? Utilizando as clássicas bobines de Super 8, de 3 minutos e 20 segundos de duração, regista planos fixos, sem som, das personalidades mais diversas do mundo do cinema. Os resultados dão a ver atitudes bem diversas face ao olhar da câmara, numa colecção de “auto-retratos” que têm tanto de espelho como de máscara — Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard [video], Wim Wenders, Pedro Costa ou Isabel Ruth são algumas dos seus protagonistas, a ver nas sessões da Cinemateca.


Por vezes, o trabalho de Courant assume-se como uma homenagem a referências emblemáticas da memória cinéfila: é o caso de Les Aventures d’Eddie Turley, uma colecção de imagens fixas “recriando” Alphaville (1965), de Godard, ou ainda BB + Marilyn = Godard + Preminger, longa-metragem desenvolvida a partir de 2013, tendo como ponto de partida a iconografia de Brigitte Bardot.
Noutros filmes, podemos encontrar uma insólita etnografia (por exemplo, 24 Passions tem como base o registo de uma representação da Paixão de Cristo numa aldeia da região de Ardèche, ao longo de 24 anos) ou uma geografia à beira do surreal (À Travers l’Univers, sobre as ruas e praças de uma povoação de Isère). Através dos filmes de Courant, o mundo renasce como “coisa” transparente e misteriosa — dir-se-ia que a atitude documental nos pode colocar em contacto com os enigmas dos nossos modos de estar e viver.

* Ciclo Gérard Courant – O Homem-Câmara
Cinemateca Portuguesa (Sala Luís de Pina)
Até sexta, dia 23 — sessões diárias às 18h30

(Gérard Courant estará presente em todas as sessões)