John Ridley, criador da série American Crime, é uma personalidade multifacetada, com presença forte na literatura, no cinema e na televisão — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (30 Abril), com o título '“Não podemos dizer que alguns têm direito ao Sonho Americano e outros não"'.
Argumentista consagrado em televisão e cinema, John Ridley é um caso invulgar de versatilidade. Começou a ser conhecido quando o seu primeiro romance, Stray Dogs, foi adaptado ao cinema por Oliver Stone, dando origem a Sem Retorno (1997), um “thriller” protagonizado por Sean Penn e Jennifer Lopez. Depois, trabalhou como argumentista em títulos como Três Reis (1999), de David O. Russell, ou 12 Anos Escravo (2013), de Steve McQueen, este valendo-lhe um Oscar. Em paralelo, desde a série Martin (1993-97), foi desenvolvendo uma carreira televisiva que desembocou na criação de American Crime (2015), cuja terceira temporada está a passar no TV Séries. A partir de uma peculiar visão histórica e social, Ridley está a elaborar o seu mapa da América.
A série American Crime começou com histórias e personagens da Califórnia; na segunda temporada passou para Indiana e, agora, na terceira, fixou-se na Carolina do Norte. Dir-se-ia que está a tentar desenhar uma espécie de mapa social dos EUA.
Sem dúvida. A América é um país gigantesco: em diferentes regiões, as pessoas pensam e sentem de modo diferente. Claro que isso acontece em muitos outros países, mas sendo os EUA um país de tão vasto território, a sensação de diferença é ainda mais forte. Para a nossa série, era importante fazer sentir que aquilo que mostramos pode estar a acontecer, por exemplo, na costa ocidental, no sul ou no centro — é importante vermo-nos como povo e falar dos temas que, realmente, nos marcam.
Será que, hoje em dia, a televisão é mais capaz de dar conta dessas diferenças do que o cinema?
Não sei, até porque na América temos condições para nos expressarmos e olhar as nossas questões. Em todo o caso, é verdade que, em televisão, encontramos muitas produções apostadas em mostrar a pluralidade das nossas raças, rostos e regiões.
Na terceira temporada de American Crime, Luis Salazar, interpretado por Benito Martinez, um mexicano que tenta encontrar o seu filho desaparecido, será a personagem mais ligada ao presente. Foi, de alguma maneira, pensada para produzir esse efeito?
É claro que, nos EUA, os temas ligados à emigração têm estado na ordem do dia, mas esse é um assunto transversal que, de facto, encontramos em todas as partes do mundo. No caso da nossa série, importa sublinhar que são personagens e histórias que não se esgotam nas questões laborais — são histórias que envolvem famílias e dramas. Quando contamos histórias que envolvem emigração, creio que devemos compreender que não são apenas histórias sobre ter ou não ter emprego — são histórias que não podem ser desligadas da dinâmica global de toda a sociedade. Por isso é tão importante não demonizarmos as pessoas ou limitarmo-nos a construir suposições sobre o que são. Se conhecermos melhor quem são e como contribuem para a sociedade, isso ajudará a lidar melhor com os problemas da emigração. É essa, afinal, a génese da América: não podemos dizer que alguns têm direito ao Sonho Americano e outros não.
Como é que encontra e desenvolve as suas personagens? Nesse aspecto, escrever para uma série televisiva assemelha-se a escrever um romance?
No fundo, creio que as personagens se vão revelando de modos muito diversos. Claro que, quando se escreve um romance, há muito mais tempo disponível para definir e desenvolver as personagens; em televisão não haverá o mesmo tempo, mas há, obviamente, o elemento visual, envolvendo aspectos como a linguagem corporal ou a roupa que cada um usa. Digamos que cada forma de narrativa tem os seus desafios, mas também as suas compensações.
Quando viu o filme Sem Retorno [U Turn], realizado por Oliver Stone a partir do seu primeiro romance, de alguma maneira sentiu que as personagens, precisamente porque tinham mudado de contexto, já não lhe pertenciam?
Não direi que já não me pertenciam, mas é óbvio que tinha havido um processo de evolução e transformação. Desde o guarda-roupa até aos cenários, por certo passando também pelo trabalho dos actores, era possível sentir, literalmente, as personagens a saltar da página escrita para o ecrã.
Qual a sua relação com os actores? Acontece-lhe descobrir novas ideias e sentimentos através dos actores?
Absolutamente. Muitas vezes o trabalho dos actores conduz-nos a uma visão muito mais profunda e elaborada das personagens, mesmo quando os novos elementos com que contribuem não se inscrevem directamente na acção. Aliás, nesse sentido, acredito que é importante manter um diálogo aberto, não apenas com os actores, mas com todos os elementos da equipa.
No seu trabalho, em particular numa série como American Crime, haverá uma homenagem implícita a alguns clássicos de Hollywood?
Acredito que uma parte do meu trabalho está marcado por elementos que, no cinema, tiveram um impacto específico na minha pessoa. São influências que não definiria pela palavra “homenagem”, mas que reconheço, em absoluto, como inspiradoras. Considero-me um bom estudioso do trabalho dos outros.
Que efeitos teve na sua vida profissional o Oscar de argumento adaptado que ganhou com 12 Anos Escravo?
É inevitável que haja uma mudança na percepção que os outros têm daquilo que é o nosso trabalho. Devo dizer que, antes, tinha já a sorte de ter uma carreira sólida como argumentista, o que não me impede de reconhecer que, nesse ano, vivi momentos muito especiais. Na altura, estava a começar a trabalhar em American Crime e, em boa verdade, não houve muito tempo para reflectir sobre a questão — tenho também a sorte de, ao longo dos anos, trabalhar com pessoas que confiam no meu trabalho e que sabem que tento sempre fazer o melhor.