Através do filme O Círculo, reencontramos uma questão vital da nossa contemporaneidade: que vida (social) estamos a protagonizar através das redes (sociais)? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Abril).
A estreia do filme O Círculo, com Emma Watson e Tom Hanks, baseado no “best-seller” homónimo de Dave Eggers (ed. Relógio d’Água), veio lembrar-nos uma evidência que, em boa verdade, é todos os dias recalcada pelos valores dominantes no espaço mediático (sobretudo televisivo). Vivemos, de facto, assombrados pela violência discursiva que prolifera nas chamadas redes sociais, ao mesmo tempo que as suas “informações” são muitas vezes tratadas como inquestionáveis discursos jornalísticos.
Não é nada de novo no cinema de Hollywood que, ao contrário do que proclamam os mais ancestrais lugares-comuns, continua a integrar importantes e ousadas reflexões sobre as dinâmicas sociais, tecnológicas e políticas. Em 2010, por exemplo, David Fincher realizou um filme prodigioso sobre Mark Zuckerberg e o nascimento do Facebook. Chamava-se A Rede Social e tinha uma frase promocional cuja ironia (mesmo com números já ultrapassados) vale a pena recordar: “Não se conseguem 500 milhões de amigos sem fazer alguns inimigos”.
Que estava (e está) em jogo? O próprio conceito “social” que aceitamos sem pensar. De que sociedade falamos quando um dos mais populares gestos quotidianos consiste em escrever um qualquer insulto contra os companheiros virtuais? Ou ainda: inscrever um polegar ao alto numa página da Net passou a constituir a apoteose de comunicação em que vivemos?
Como é óbvio, não se trata de, infantilmente, celebrar os “bons” e demonizar os “maus”. Trata-se, isso sim, de pensar os conceitos dominantes do nosso viver “em rede”. Mesmo com a sua mal resolvida estrutura dramática, O Círculo não deixa de ser um filme muito útil para nos ajudar nessa tarefa. Porquê? Precisamente porque supera o individualismo patológico dos nossos dias (a proeza mais recente desse individualismo consiste em proclamar que “eu” é que sei se as vacinas são ou não necessárias para os meus filhos...).
Estamos perante uma parábola sobre o sistema de valores dos que proclamam que quanto mais links gerarmos, mais livres seremos. Como? E porquê? O Círculo consegue mesmo apontar o verdadeiro tabu desta conjuntura, aliás exemplarmente condensado na postura do líder empresarial interpretado por Tom Hanks: ele é o sacerdote de todas as formas de “transparência”, no limite tratando os dados individuais como banal software da grande máquina virtual. O que está em jogo é a nossa capacidade de discutir essa ideologia — e bem sabemos como, na histeria dos nossos contactos “sociais”, a palavra ideologia caiu em desuso.