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Como é que o maior festival de cinema do mundo lida com as novas formas de difusão dos filmes, nomeadamente o "streaming"? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Abril).
Uma tradição perversa faz com que, ciclicamente, sejamos confrontados com um dilema que seria inerente a qualquer problematização política do cinema: devem fazer-se filmes “populares” ou filmes “intelectuais”? Enredados nos jogos florais de tal formulação, esquecemo-nos do essencial: o modo como a vida pública dos filmes está sempre marcada pelo poder que condiciona todos os outros. A saber: o poder de os difundir.
Que o diga Francis Ford Coppola, ele que, em 1981, sonhou refazer o ideal clássico de um grande estúdio de Hollywood, produzindo e realizando a obra-prima Do Fundo do Coração. Foi um monumental falhanço. Porquê? Por ser uma tentativa “popular” de refazer o decadente género musical? Ou por resultar de uma visão “intelectual” do respectivo património? Nada disso. Coppola falhou uma dimensão que, em boa verdade, nunca chegou a controlar. A saber: a distribuição/exibição do filme.
O Festival de Cannes surge, agora, como um dos protagonistas de um novo e interessantíssimo episódio, sintomático da complexidade desses problemas (naturalmente diversos, de contexto para contexto). Assim, a federação que agrega os exibidores de cinema franceses (FNFC) reagiu ao facto de a selecção oficial da 70ª edição do certame (17-28 Maio) incluir dois filmes produzidos pela plataforma de “streaming” Netflix — são eles Okja, uma aventura fantástica com Tilda Swinton, assinada pelo sul-coreano Bong Joon-ho, e The Meyerowitz Stories, uma comédia de Adam Sandler dirigida por Noah Baumbach.
Que está em jogo? A avaliação “artística” dos filmes? Nada disso. Antes o facto de os exibidores recearem que a lógica da Netflix — difundir pela Internet os produtos audiovisuais — acabe por contaminar todos os parâmetros da vida pública do cinema, fazendo com que, pelo menos em casos como os citados, os filmes não cheguem a passar pelas salas.
Será que a organização de Cannes não quis lidar com as consequências simbólicas das suas escolhas? Bem pelo contrário, creio (o festival tem estado mesmo na vanguarda deste debate). A crescente importância do cinema produzido em ligação directa com as empresas de “streaming” passou a ser um dado incontornável da vida actual do cinema — para nos ficarmos por um dos mais comentados exemplos, lembremos que os direitos de distribuição de Manchester by the Sea (que valeu um Oscar a Casey Affleck) são da Amazon. O que está em jogo envolve a defesa dos circuitos clássicos das salas, tanto quanto a abertura à máxima diversidade de produção dos filmes.