sábado, abril 01, 2017

Crónicas de um rapto


A longa história de um cativeiro de 111 dias, vivido por um técnico financeiro que prestava serviço numa ONG no Cáucaso em 1997 habita o tutano das mais de 400 páginas da mais recente obra do canadiano Guy Delisle (o mesmo de Pyongyang - Uma Viagem à Coreia do Norte). E, S'Enfuir - Récit d'un Otage, que se baseia nas memórias do relato do próprio protagonista, que o autor conheceu por volta do ano 2000, é uma crónica mais de silêncios, de esperas, de dúvidas e medos do que uma trama de ação ou até mesmo de alma geopolítica. Ser raptado é pior do que ser prisioneiro, diz-nos o protagonista nesta crónica desenhada de Delisle. Até porque o preso sabe porque ali está e até quando ali fica. Ao passo que ao raptado resta contar os dias, sem saber exatamente quando tudo irá terminar. Ou, até mesmo, como irá terminar.

S'Enfuir - Récit d'un Otage segue à risca essa ideia. E depois de nos mostrar o momento do rapto e transporte do sequestrado para lá da fronteira, coloca-nos nos vários quartos nos quais vai sendo encarcerado, de pulso agrilhoado com algemas a um aquecedor ou o que mais de sólido ali houver por perto, restando-nos acompanhar, com ele, o minimalismo do quotidiano que lhe é dado a conhecer numa sucessão monótona de dias em que, além das pausas para comer, ir à casa de banho, ocasionalmente com direito a lavar-se, pouco mais acontece.

Delisle é magnífico ao sugerir a lentidão da passagem do tempo. Numa das sequências a evolução da luz solar nas paredes do quarto é tudo o que vemos. Nós e o raptado. Vivemos depois a sua contagem dos dias, os pensamentos, os medos. E, a dada altura, as histórias de batalhas das campanhas de Napoleão que conta a si mesmo para passar o tempo. A sopa, é rotina minimalista. Mas quando tem um sabor diferente, traz momentos de raro prazer. Os ruídos, nas salas contíguas ou no exterior são presença contínua, mas nunca clara... Os raptores ora o visitam mudos, ora gritam numa língua que o raptado não compreende. Ocasionalmente convidam-no para ver televisão. Por vezes há mais gente em casa... Mas ao fim do dia volta a deitar-se no seu mundo: um colchão, uma algema, o silêncio ao seu redor e um sonho apenas: sair dali. Que filme que daqui poderia nascer!