I. Poucas semanas antes do dia 25 de Abril de 1974, estreava-se em Lisboa, no cinema Mundial, o filme The Way We Were (1973), de Sydney Pollack, com Barbra Streisand e Robert Redford a viverem uma história de amor nos tempos do maccartismo.
II. A sessão da estreia (o hábito das ante-estreias não existia) foi atravessada por uma perturbação muito particular. A certa altura, na cena decisiva em que Streisand e Redford, sozinhos no cenário do refeitório da universidade, discutem o contexto político que estão a viver, as legendas começaram a faltar... Na prática, a comissão de censura tinha cortado a cena (por certo, por nela se falar de "vermelhos" e "conservadores"), mas alguém se esquecera de a suprimir na cópia para exibição: a cena não tinha sido legendada, mas as suas imagens (e sons!) continuavam lá. Durante a projecção e, depois, no final, a sala foi invadida por uma sensação de ambíguo silêncio, sensação de algum modo intensificada pelo facto de um dos convidados da sessão ser Ramiro Valadão, então presidente da RTP.
III. Lembro-me muitas vezes desta situação como sintomática de algumas vivências pré-25 de Abril. Talvez porque há nela qualquer coisa de anedótico que contraria a visão maniqueísta do "antes" e do "depois" com que, ainda hoje, tantas vezes, parecemos contentar-nos — e que, distraidamente ou não, passamos aos mais novos.
IV. Claro que há uma diferença essencial entre um tempo de censura instituída e um outro em que essa censura desaparece. Não é isso que está em causa. Como não está em causa que vivíamos uma época dilacerada, antes de tudo o mais, por uma Guerra Colonial que afectava tudo e todos, a começar pelos mais jovens que iam (ou podiam ser enviados) para os combates em África.
V. O que se regista é tão só o facto de uma simples projecção de um filme envolver uma dimensão social que, hoje em dia, a redução dessa mesma instância a fenómenos em "rede" parece ignorar. É errado descrever o Estado Novo — e, em particular, a chamada "primavera marcelista" em que ocorreu o episódio evocado — como uma paisagem de total negrume em que nada acontecia, a não ser um confronto entre o "poder" e o "povo"... Afinal, o tecido social era uma encruzilhada de muitos acontecimentos microscópicos que importa conhecer para além (ou aquém) de qualquer simplificação "ideológica" — a sessão do cinema Mundial, apesar dessa sua dimensão microscópica, constitui matéria reveladora de tal encruzilhada. Ou ainda: a ditadura em que vivíamos não pode ser reduzida a meia dúzia de clichés mediáticos, de "direita" e de "esquerda", com que hoje, por indiferença ou estúpido liberalismo, nos contentamos — como se diz no filme, é tudo mais complicado do que parece ou do que queremos acreditar.