sábado, março 11, 2017

Um "toque" de Lubitsch (2/2)

A obra do genial Ernst Lubitsch (1892-1947) está em foco ao longo dos meses de Março e Abril na Cinemateca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Março).

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As obras-primas do “Lubitsch touch” encontram-se, sobretudo, no período da Paramount, sendo forçoso destacar: One Hour with You/Uma Hora Contigo (1932), de novo com MacDonald/Chevalier; Trouble in Paradise/Ladrão de Alcova (1932), com Miriam Hopkins e Herbert Marshall, e Design for Living/Uma Mulher para Dois (1933), com Gary Cooper, Miriam Hopkins e Fredrich March. São filmes do chamado período “pré-Código” (antes de os estúdios de Hollywood terem estabelecido um sistema de regras condicionando as representações dos laços amorosos e, em particular, as sugestões de carácter sexual), brincando com requintada elegância com todas as ambivalências morais. Observe-se o inusitado título português Uma Mulher para Dois, na verdade identificando “apenas” um trio de personagens apostado em construir uma comunidade platónica.
[Cinemateca]
Lubitsch conseguia, afinal, partir de situações dramáticas e cómicas mais ou menos convencionais para, metodicamente, as decompor através de uma imprevisibilidade muitas vezes apoiada em calculadas “omissões” narrativas (as suas célebres elipses). Se o cinema existe como instrumento para dar a ver as relações humanas, ele sabia expor os elementos das respectivas contradições através de uma elaborada arte de ocultação e sugestão.
É isso mesmo que encontramos nos seus dois prodigiosos “filmes-políticos”: Ninotchka (1939), centrado nas aventuras de uma espia russa em Paris, e Ser ou Não Ser (1942), desmontando de forma sarcástica a arrogância nazi. O primeiro serviu para relançar a carreira de Greta Garbo, mesmo se, insolitamente, com o seu filme seguinte, A Mulher de Duas Caras (1942), ela pôs fim a essa carreira. Contrariando a imagem séria e austera de Garbo — o filme foi mesmo promovido com a frase “Garbo ri” —, Lubitsch dirige-a num jogo de verdades e aparências capaz de desmanchar as hipocrisias políticas, em última instância celebrando a irracionalidade do impulso amoroso.
Billy Wilder, outro mestre germânico de Hollywood (nascido na Áustria), colaborou no argumento de Ninotchka. Reza a lenda que, na porta do seu gabinete de trabalho, tinha inscrita uma pergunta inspiradora: “Como é que Lubitsch faria isto?” No funeral do seu mestre, Wilder desabafou com tristeza: “Não há mais Lubitsch.” William Wyler, também de origem germânica (viria a dirigir Ben-Hur, em 1959), completou com amargura: “Pior do que isso: não há mais filmes de Lubitsch.”