quinta-feira, março 23, 2017

Copos, mulheres, a Europa e as palavras

Jeroen Dijsselbloem e Jean-Claude Juncker
I. Leio nas notícias uma frase que, creio, importa reter. Tem a ver com as palavras proferidas por Jeroen Dijsselbloem, presidente do Europgrupo, considerando que os países do sul pedem ajuda depois de terem gasto "todo o dinheiro em copos e mulheres". Assim, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, comentou a reacção do primeiro-ministro português, esclarecendo: "Relativamente às declarações que o presidente do Eurogrupo fez, e tendo em conta que o primeiro-ministro português, o meu amigo António (Costa), acaba de nos convidar a pedir ao senhor Dijsselbloem que se demita, gostaria de dizer numa frase que acredito que aquilo que o senhor Dijsselbloem parece ter dito não reflecte o que ele pensa no fundo".

II. Pasmo perante o silêncio ensurdecedor com que foi recebida esta explicação (?) de Juncker. Vivemos num ambiente "social" em que, por exemplo, se um modesto crítico de cinema se atreve a lembrar que os mecanismos de montagem do cinema de Alfred Hitchcock (em particular a aplicação do chamado "plano subjectivo") envolvem uma filosofia do espectáculo enraizada na interrogação crítica da moral do próprio espectador, tanto basta para que seja insultado na praça pública como um troglodita que só quer "complicar" aquilo que toda a gente "percebe"... Ao mesmo tempo, depois de Dijsselbloem nos reduzir a bêbedos e machistas, Juncker vem informar-nos que se trata apenas de uma avaliação errada da candura intrínseca da sua linguagem — e ninguém diz nada...

III. Decididamente, um dos problemas de fundo da Europa é a sua linguagem institucional — entenda-se: a consistência do seu discurso cultural, sendo a cultura não a ópera a passar no horário nobre das televisões, mas sim o sistema de valores que nos unem ou podem unir. É certo que a Europa é uma ideia admirável cuja defesa implica que não cedamos aos demagogos, de direitas e esquerdas, que apelam a uma espécie de exílio utópico do país. Em qualquer caso, será que tal visão implica que tenhamos chegado ao ponto em que, além de suportarmos a frivolidade irresponsável de alguns actores da cena política, tenhamos que decifrar aquilo que, no fundo, eles pensam? É muito simples resumir o problema: através daquilo que parece ter dito ou daquilo que pensa, Jeroen Dijsselbloem não pertence a nenhuma Europa em que possamos cultivar a difícil arte do diálogo — mesmo que Jean-Claude Juncker nos queira transformar em semiólogos do intolerável.
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* NOTA - Quando Portugal integrou a Europa [1985], houve quem fosse rotulado de perigoso "intelectual" por lembrar duas dúvidas de fundo, inerentes à dinâmica global das instituições europeias. Por mera pedagogia, vale a pena recordar tais dúvidas. A saber: primeiro, uma união económica é essencial, mas não basta, para consolidar uma união política; depois, nenhuma união económico-política se organiza, enriquece e diversifica sem pensar o espaço cultural e os laços que nele, ou através dele, se podem estabelecer.