sábado, janeiro 21, 2017

Silêncio + Scorsese (2/3)

Adam Driver e Andrew Garfield
A estreia de Silêncio, de Martin Scorsese, a 19 de Janeiro, constitui, desde já, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Janeiro), com o título 'Martin Scorsese à escuta do silêncio de Deus'.

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2. "Porquê eu?"

Silêncio vem encerrar aquilo que, a partir de agora, poderemos designar como a “trilogia religiosa” do seu autor, sendo A Última Tentação de Cristo (1988) e Kundun (1997) os dois primeiros momentos. O que os liga é o reconhecimento de uma trágica e comovente desproporção simbólica. Tal como os padres de Silêncio, Jesus e o Dalai Lama, figuras nucleares desses dois filmes, experimentam a vertigem de serem convocados para uma missão propriamente sagrada — a assunção de uma verdade que transcende os dados da existência comum — que lhes suscita uma dúvida radical: serão eles capazes de satisfazer os desígnios da divindade que servem?
Há uma outra maneira de dizer isto: o trabalho dos portadores das palavras da fé não pode deixar de lidar com a vida comum, regressando à terra, às tensões sociais, às convulsões da política. Ou ainda: os protagonistas da missão divina vão ter de reconhecer os limites inerentes à sua condição humana. Um pouco como o Jesus de A Última Tentação de Cristo que, a certa altura, se vira para o Céu, proclamando uma incontornável angústia: “Porquê eu?”.
Escusado será dizer que Scorsese não perde de vista o paradoxo formal e filosófico que assim se instala: por um lado, a expansão da fé remete sempre, por definição, para qualquer “coisa” que está para além do visível; por outro lado, o cinema é essa arte “primitiva” que ambiciona confrontar-se com o invisível, imaginando-o, ou melhor, revertendo-o para o mundo das imagens. Será preciso recordar que Georges Méliès, pioneiro absoluto do poder encantatório das imagens, era exuberantemente homenageado em A Invenção de Hugo?
Daí o peculiar suspense que se vai instalando no desenvolvimento de Silêncio. É verdade que a fé dos protagonistas está para além das imagens (“fumie”) que ilustram a sua crença. Mas não é menos verdade que aquilo que as autoridades japonesas lhes exigem envolve a negação do valor simbólico dessas imagens (literalmente espezinhadas). Mais do que isso: eles vão ter de escolher entre esse acto de conspurcação das imagens e a morte — a morte dos seus irmãos de fé ou a sua própria morte.