Martin Scorsese durante uma conversa sobre Silêncio, na Escola Preparatória Fordham (Bronx, Nova Iorque) * FOTO: jesuits.org |
A estreia de Silêncio, de Martin Scorsese, a 19 de Janeiro, constitui, desde já, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Janeiro), com o título 'Martin Scorsese à escuta do silêncio de Deus'.
1. Adaptando Shusaku Endo
Não é todos os dias que um filme consegue escapar às rotinas instaladas no mercado, sejam elas de natureza promocional, sejam induzidas pelo alarido mediático. Silêncio, de Martin Scorsese, é um desses filmes (estreia dia 19): um objecto obstinado e obsessivo, alheio a tendências, modas ou estilos ditados por factores exteriores ao seu próprio pensamento — aí residirá, afinal, o seu espantoso apelo universal.
Há em Silêncio uma dimensão genuinamente portuguesa que não pode deixar de nos tocar. Inspirado no romance homónimo do japonês Shushaku Endo, lançado em 1966 (editado entre nós pela Dom Quixote), o filme centra-se na odisseia de dois padres jesuítas portugueses. Enviados ao Japão na segunda metade do século XVII, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) têm por missão descobrir o paradeiro de Cristóvão Ferreira (Liam Neeson) que, depois de torturado, terá renegado a sua fé. Essa sua apostasia — consumada através do pisar de uma “fumi-e” (imagem de Jesus Cristo ou de uma figura santificada) — envolve um desafio radical para a Igreja: como difundir a sua doutrina em território asiático? Mais do que isso, estamos perante uma questão subtilmente política: como lidar com o peculiar sistema de poderes e crenças da sociedade japonesa?
Para Scorsese, a adaptação do livro de Endo nunca foi uma banal tarefa de “reconstituição” histórica, muito menos a hipótese de fabricar um “blockbuster” habitado por heróis ou super-heróis. A sua relação com o romance foi mesmo vivida como uma saga introspectiva, inerente à reflexão sobre os caminhos da fé católica. De tal modo que a ideia de filmar Silêncio o acompanhou desde 1989, quando descobriu o romance, curiosamente em pleno Japão (onde se encontrava para interpretar a personagem de Vincent Van Gogh num dos episódios do filme Sonhos, de Akira Kurosawa).
A rodagem chegou a estar prevista para 2009, com os nomes de Daniel Day-Lews, Benicio Del Toro e Gael García Bernal a liderar o elenco. O certo é que Scorsese optou por concretizar Shutter Island (2010) e A Invenção de Hugo (2011), desse modo abrindo um conflito com os produtores italianos da Checci Gori Pictures, resolvido nos tribunais no começo de 2014 (através de um acordo cujos termos nunca foram divulgados). Pouco depois, foi decisiva a inclusão de Irwin Winkler na equipa de produção, ele que já estivera ligado a vários títulos de Scorsese, incluindo Touro Enraivecido (1980) e Tudo Bons Rapazes (1990). O essencial da rodagem viria a decorrer entre Janeiro e Maio de 2015, em Taiwan.