Este é um país em que o grande debate moral se organiza em torno dos... árbitros de futebol. Quem sabe da existência de um filme sobre Hannah Arendt — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Janeiro), com o título 'Ainda sabemos parar para pensar?'.
A estreia do documentário Vida Activa: O Espírito de Hannah Arendt, realizado pela cineasta israelita Ada Ushpiz, é um pequeno grande acontecimento a que vale a pena regressar para além da missão rotineira de fazer a sua “crítica”. Porquê? Porque se trata de um filme empenhado em informar sobre o pensamento plural de Arendt, nunca abdicando de o inscrever no seu multifacetado contexto histórico e intelectual. Mas também porque através dele podemos detectar os eventuais equívocos do muito propalado retorno dos documentários ao circuito comercial do cinema (sendo eu um entusiasta desse retorno, devo admitir que posso ser também um dos mais directamente atingidos por tais equívocos).
Aqui está, de facto, um filme carregado de ideias e problemas que apelam à discussão. Por ele circulam assuntos que marcaram toda a existência, pública e privada, de Arendt — desde a célebre e sempre polémica noção de “banalidade do mal”, enunciada a partir do julgamento do nazi Adolf Eichmann em Jersusalém, até à questão moral e política da coexistência do Estado de Israel com os seus vizinhos árabes, passando pelo seu envolvimento com Martin Heidegger.
E a pergunta que emerge é esta: porque é que um filme como este não surge na linha da frente das discussões mais mediatizadas? Não é uma pergunta idealista. É apenas uma pergunta suscitada por dicotomias impossíveis de ignorar. Exemplo? Apenas um: o país real não discute Hannah Arendt (a maior parte dos cidadãos ignora mesmo a existência deste filme), mas esse mesmo país está (e vai continuar a estar) ocupado pelos debates morais, conceptuais e não sei que mais sobre... a arbitragem no futebol.
Não caricaturemos. E, sobretudo, evitemos ceder à ilusão pueril de que a discussão de um pensamento tão e rico e complexo como o de Arendt pode ser assunto global, igualmente partilhado por todos os cidadãos. O que aqui tento identificar é de outra natureza, está antes deste filme. A saber: a crescente impotência de muitos objectos cinematográficos gerarem a troca de ideias cujo desejo está, afinal, inscrito na sua própria gestação.
A própria Arendt reconhecia que a dificuldade de um pensamento não estava tanto na sua transmissão, mas na convocação do outro (e este outro era, para ela, qualquer cidadão, independentemente da sua formação académica ou condição social) como um ser humano capaz de pensar. “Parar para pensar”, dizia ela. Ou será que, distraídos do cinema, passámos a confundir a velocidade televisiva com o próprio pensamento?