domingo, janeiro 29, 2017

O nosso Trump televisivo

THE APPRENTICE [EUA]
Como lidar com a afronta de Donald Trump sem pensar o papel social, simbólico e político do espaço televisivo? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Janeiro).

Eis um fenómeno global, por certo com nuances. E também com importantes excepções. Mas que funciona a partir de uma regra audiovisual: as televisões tendem a dramatizar qualquer questão até ao máximo maniqueísmo. Exemplo do futebol: a “obrigação” de escolher o melhor jogador do mundo entre Lionel Messi e Cristiano Ronaldo... Como se não víssemos todos os dias dezenas de outros, igualmente brilhantes, a mostrar o seu talento.
O que está a acontecer com Donald Trump constitui um processo revelador dessa filosofia comunicacional. Não apenas da percepção dominante do universo político, mas também do facto de as suas configurações televisivas, longe de serem meros elementos “descritivos”, se terem tornado uma componente vital da (des)politização dos espectadores — isto é, de cada um de nós.
Que está, então, a acontecer? Há cerca de um ano, o planeta televisivo apresentava Trump como uma figura irrisória, apelando apenas à anedota. Que o espaço televisivo se esqueça disso mesmo, eis o que diz bem da ideologia que o domina: o seu valor fundamental é a criação de clímaxes mais ou menos efémeros (“apanhados”, em boa verdade), procurando sempre novas variações sem qualquer relação entre si. Agora, Trump deixou de ser um “palhaço” mais ou menos ridículo, passando a surgir muitas vezes como uma ameaça que importa “denunciar”.
Apontar esta contradição não decorre de qualquer canonização do magnate que se tornou Presidente. Trata-se apenas de reconhecer que os extremismos do espaço televisivo favorecem uma visão crispada e simplista, não apenas da política, mas de qualquer actividade humana.
Em boa verdade, através de tal crispação, o principal beneficiado é o próprio Trump. Afinal de contas, enquanto personagem ligada à mediocridade da “reality TV” (no programa The Apprentice, na NBC), ele foi apurando as técnicas que, ingenuamente, agora são aplicadas “contra” ele. A saber: alimentar uma permanente sugestão de conflito, esvaziando a televisão de qualquer pensamento e impondo-lhe uma lógica quotidiana de “tribunal”.
Pode a televisão ajudar a pensar? E pensar-se como algo mais do que uma teia de soundbytes? Lembremos apenas que tem sido Hollywood a mostrar-nos que sim. Recorde-se o notável exemplo de Boa Noite, e Boa Sorte (2005), de e com George Clooney, evocando a saga de Edward R. Murrow (interpretado por David Strathairn) e do colectivo de jornalistas da CBS que, em 1953, souberam expor as imposturas do “maccartismo”. O filme era a preto e branco, mas o pensamento não.