Emir Kusturica continua a filmar memórias e fantasmas da história dos Balcãs — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Dezembro), com o título 'Estética da imperfeição'.
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O cinema de Emir Kusturica não será, por certo, um modelo de contenção. O seu gosto pela permanente possibilidade de passar do mundo concreto para as paisagens oníricas faz com que quase todos os seus filmes pareçam existir como crónicas incompletas, imperfeitas, recusando as compensações da reflexão e da quietude. Talvez apenas Underground (1995) consiga encontrar uma boa solução de compromisso narrativo — será por isso, aliás, que sentimos que todos os filmes que vieram depois são variações mais ou menos inspiradas sobre os seus temas e estruturas.
Emir Kusturica |
Em boa verdade, é também esse permanente sentimento de imperfeição que torna a sua obra tão interessante. Kusturica não pactua com nenhuma das ilusões, naturalistas ou espectaculares, dos nossos dias. Para ele, o cinema não tem que se justificar face a uma qualquer realidade, nem obedecer a qualquer código estabelecido de espectáculo. Porquê? Precisamente porque tais noções, “realidade” e “espectáculo”, reaparecem, em aberto, no interior de cada novo projecto — o filme é tão só uma via de reavaliação dos respectivos poderes e limites.
Assim volta a acontecer neste fascinante e desequilibrado Na Via Láctea. Por cada momento em que uma certa auto-indulgência trava o fulgor do filme, segue-se um outro em que somos envolvidos pelo poder encantatório da invenção visual, da riqueza “barulhenta” da banda sonora e ainda de algumas surpreendentes soluções de montagem. O olhar de Kusturica obedece, afinal, a um paradoxal princípio de pedagogia estética: talvez que o cinema possa libertar-se da ilusão de “reproduzir” o mundo, convocando o espectador para a possibilidade de, através dele, pressentir os sabores de uma liberdade utópica. Perante tal projecto, todas as imperfeições são bem-vindas.