O CERCO (1970) |
Com a morte de Maria Cabral, desaparece um dos rostos mais singulares (e simbolicamente mais importantes) da história do cinema português — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (17 Janeiro).
São raros os nomes de actores portugueses que se tornaram conhecidos apenas através do cinema: Maria Cabral foi um desses nomes — faleceu no sábado, dia 14, em Paris, contava 75 anos. A notícia foi divulgada pela Academia Portuguesa de Cinema, no Facebook, definindo-a como “rosto e símbolo do Novo Cinema português”.
Esse valor simbólico é indissociável de um título fulcral na história da modernidade do cinema português: O Cerco (1970), retrato amargo e doce da Lisboa da época, em que António da Cunha Telles arriscou dar o protagonismo a alguém que era, afinal, uma quase desconhecida. Aliás, a escolha de Cunha Telles — que já tinha produzido, por exemplo, Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1962) e Belarmino (Fernando Lopes, 1964) — pode também simbolizar um princípio, ao mesmo tempo estético e humano, também ele essencial para compreendermos algumas linhas de força das novas cinematografias que se afirmavam nos mais diversos contextos geográficos e culturais: tratava-se, de facto, de contrariar a lógica mais tradicional (privilegiando os intérpretes com formação teatral), optando por presenças capazes de garantir uma relação virginal com a câmara, porventura mais espontânea ou genuína.
Ainda nos anos 50, tinha apresentado programas infantis na RTP. Mais tarde, participou numa curta-metragem de João César Monteiro que não chegou a ser concluída. Numa entrevista dada à RTP, por altura do lançamento de O Cerco, Maria Cabral citava também os seus anteriores trabalhos como modelo de publicidade, dizendo mesmo: “Por estranho ou esquisito que pareça, não percebo nada de cinema do lado de trás da câmara”. Afinal, tinha gostado da experiência por causa daquilo que acontece “à frente da câmara”. Daí a eterna pergunta: num contexto em que o cinema tivesse outra consistência industrial e, sobretudo, oferecesse aos seus profissionais uma maior segurança de trabalho, a trajectória cinematográfica da actriz teria sido diferente?
Provavelmente, sim. O certo é que, na altura, Maria Cabral apenas participou em mais um filme: O Recado (1972), de José Fonseca e Costa, narrativa parabólica sobre a repressão da PIDE, marcada por um desencantado romantismo, outro momento emblemático da produção portuguesa pré-25 de Abril. Ao longo dos anos 70, optou por trabalhar em teatro, em Paris, regressando a Portugal, em 1981, com Miguel Yeco, para apresentar uma peça no AR.CO.
Em meados da década de 80, rodou ainda três filmes em anos consecutivos: Vidas (1984), de novo sob a direcção de Cunha Telles, agora expondo as clivagens geracionais no Portugal pós-25 Abril; No Man’s Land (1985), um pequeno papel numa realização de Alain Tanner, autor central do Novo Cinema suíço; e Um Adeus Português (1986), visão austera das feridas da Guerra Colonial com assinatura de João Botelho.
Nascida em Lisboa, Maria Cabral fez o liceu em Luanda e estudou Filosofia na Faculdades de Letras de Lisboa. O Cerco bastaria para lhe conferir um lugar especial na história e na iconografia do cinema português.