Em O Benfeitor, escrito e dirigido por Andrew Renzi, Richard Gere interpreta um filantropo com um passado obscuro — este entrevista foi publicada no Diário de Notícias (12 Dezembro), com o título '“O essencial do cinema americano são as produções independentes"'.
A sua personagem no filme O Benfeitor é uma figura paradoxal. A vontade que manifesta de ajudar o casal interpretado por Dakota Fanning e Theo James parece nascer de uma preocupação genuína, mas também de um sentimento de culpa. Quando leu o argumento, como é que o encarou? Inocente ou culpado?
Nunca julgo uma personagem — creio mesmo que é uma atitude perigosa. É evidente que ele está marcado pela culpa (por causa do acidente em que morreu o casal amigo, acidente que ele de alguma maneira provocou), despreza-se a si próprio. Mas é um ser humano. Na verdade, não creio que seja uma questão de culpa. Todos vivemos coisas que lamentamos, todos fizemos escolhas imperfeitas, nem sempre conseguimos ver de forma clara aquilo que nos impele a agir. Na maior parte do tempo, sentimo-nos envolvidos por forças desconhecidas e misteriosas.
Uma personagem pode levar um actor a revisitar memórias que têm a ver com a sua própria experiência — neste caso, isso aconteceu de alguma maneira?
Não, não especialmente.
Será mais fácil, ou mais interessante, interpretar uma personagem mais distante de si próprio?
Não é fácil responder. Provavelmente, é mais fácil interpretar alguém muito distante daquilo que somos — sentimo-nos mais livres. Quando interpretamos alguém que nos é mais próximo, torna-se difícil, quase impossível, ser objectivo. Mas aquilo que parece fácil, acaba por complicar-se... Enfim, ninguém se torna actor por querer funcionar como papel de parede [riso].
Sente que há diferenças importantes entre um filme de estúdio e uma produção independente como O Benfeitor?
A maior parte dos meus filmes são de estúdio, mas com baixos orçamentos. Nos anos 70/80, um filme como O Benfeitor teria sido feito por um grande estúdio — agora, corresponde à produção independente. Podemos ter menos dinheiro e um calendário de rodagem mais apertado mas, para mim, a sensação é a mesma.
Quer isso dizer que um filme como American Gigolo (1980) não seria possível, agora, com a chancela de um grande estúdio?
Provavelmente, não.
Que memórias guarda desse filme, em particular do encontro com o argumentista/realizador Paul Schrader que, poucos anos antes, tinha escrito Taxi Driver (1976), para Martin Scorsese?
Paul já se tinha estreado na realização, com um belo filme chamado Blue Collar (1978); estava, de facto, num momento alto da sua carreira. Senti-me muito honrado quando me convidou e confesso que hesitei, já que se tratava de uma personagem completamente diferente de tudo o que tinha feito antes. Pedi-lhe tempo para pensar, mas ele tinha urgência em lançar a produção. Acabei por aceitar, mesmo tendo apenas duas semanas de preparação. Uma coisa é certa: na altura, no cinema americano, ele era, provavelmente, o melhor a saber construir a estrutura de uma história.
Recuando um pouco, como foi a experiência com Terrence Malick, em Dias do Paraíso (1978)?
Na verdade, foi o meu primeiro filme. É como o primeiro amor: nunca esquecemos. Tinha feito algumas coisas na televisão, para ganhar dinheiro, mas era um actor de teatro. O primeiro filme de Malick, Badlands/Noivos Sangrentos (1973), impressionara-me, disse mesmo ao meu agente que gostava imenso de trabalhar com ele... e algumas semanas depois fui contactado para o casting de Dias do Paraíso. O processo foi complicado: Terrence levou imenso tempo e eu próprio fui um dos que o pressionou para tomar decisões. Até que, lembro-me perfeitamente, estava num hotel em Los Angeles e recebi um telefonema: “Richard, só consigo fazer este filme se for contigo.” Lembro-me da sensação de que estava a começar um novo capítulo da minha vida.
Lamenta que, agora, a produção de filmes como esse tenha mudado tanto?
Não, porque continuamos a poder fazer esses filmes. Além do mais, a televisão também está a trabalhar nesse sentido — há coisas que se fazem em televisão que nunca poderiam surgir no âmbito de um estúdio.
Há sectores importantes do público que, infelizmente, são levados a pensar que o cinema americano se esgota em Star Wars e outras produções da mesma dimensão.
De facto, um filme como Star Wars, com o seu custo de 300 ou 400 milhões de dólares, incluindo a publicidade, só pode ser feito na América. Mas o essencial do que se faz na América são os pequenos filmes independentes, normalmente rodados em muito menos tempo. No passado, um filme como O Benfeitor teria uma rodagem de uns 50 dias, mas nós fizemo-lo em 30 — e creio que a maior parte das pessoas, a começar por mim, se dá bem com isso.