sábado, outubro 15, 2016

Justiça para Bob Dylan?

1. Um vento de inquietação varreu o espaço mediático do maravilhoso planeta Terra: será justo o Nobel de Bob Dylan?

2. Daí a pergunta didáctica: será que já não é possível pensar a não ser através dos padrões impostos pelos comentários do futebol, em que se promove a ideia de que golos e resultados devem respeitar uma noção de justiça que, insolitamente, nunca ninguém esclareceu? Quem ganha um jogo a jogar pessimamente deve ser julgado em tribunal e decapitado na praça pública? Onde está escrita a lei de tal justiça?

3. Justiça para Bob Dylan? Em nome de quê? Admirando o seu trabalho ou denegrindo-o, em que medida é que o seu Nobel pode (ou deve) ser avaliado em termos de justiça? Desde quando a Academia Sueca é uma entidade legislada pela gritaria "social" dos que detêm o poder e a inteligência de recolocar o mundo numa ordem ideal e, pelos vistos, inquestionável e compulsiva?

4. Claro que uma parte significativa das reacções dos justiceiros que proliferam em todos os recantos do planeta decorre da ancestral ideia (?) segundo a qual as canções — para mais populares e vendidas nessa horrível perversão social que é o mercado — não chegam aos calcanhares da literatura. Como lidar com esse preconceito que parece ignorar, no mínimo, toda a história cultural do século XX?

5. O mais triste disto tudo é a instituição de um espaço público, sem dúvida poderosamente mediático, em que nenhum confronto de ideias ou sensibilidades é possível — resta apenas o ruído de conflitos primários e grosseiros, rapidamente transformado em guerra de soundbytes.

6. Vivemos, de facto, sob o jugo de uma justiça futebolística. Pensemos, por exemplo, em jogadores como:
> Eden Hazard
> Philippe Coutinho
> Zlatan Ibrahimovic
> Neymar
> Antoine Griezmann
> Toni Kroos
> Gareth Bale
> Thomas Mueller
> Robert Lewandowski
> Thiago Silva
São apenas 10 jogadores de equipas europeias... E podemos acumular várias dezenas de nomes com performances e carreiras do mesmo calibre. Então, porque é que, todos os anos, os comentadores do futebol nos enredam na mesma lengalenga segundo a qual é preciso escolher o melhor do mundo entre... Lionel Messi e Cristiano Ronaldo? Não há mais ninguém no planeta? A sua justiça não consegue pensar para além das fronteiras de uma qualquer dicotomia pueril?

7. Daí a tragédia muito contemporânea da (des)informação: independentemente de a obra de Bob Dylan suscitar juízos de valor "positivos" ou "negativos" (todos legítimos, não é isso que está em causa), a esmagadora maioria das notícias sobre o seu Nobel esqueceram-se (?) de citar a informação essencial. A saber: a sua escrita. Valia a pena ter lido, mostrado, difundido alguns dos seus poemas... Se temos de ver centenas de vezes os golos de Messi e Ronaldo, talvez fosse jornalisticamente pertinente informar sobre aquilo que, realmente, está na base do prémio atribuído. Dir-se-ia que quase ninguém leu a acta da Academia Sueca em que, de forma simples e clara, se escreve que o Nobel para Bob Dylan foi atribuído pela sua "criação de novas expressões poéticas no interior da grande tradição da canção americana". Como é óbvio, os justiceiros dispensam o conhecimento do real.

>>> Video do New York Times, integrado num trabalho, publicado a 13 de Outubro, sobre o modo como Bob Dylan "redefiniu as fronteiras da literatura".