quarta-feira, outubro 05, 2016

De comboio, ma non troppo

O filme de Tate Taylor que adapta o "best-seller" de Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, é um exemplo pouco feliz de recuperação de alguns clássicos mecanismos de "suspense" — basta percorrermos a obra de Alfred Hithcock (a começar por O Desconhecido do Norte Expresso, de 1951) para os encontrarmos em todo o seu esplendor. Dir-se-ia que a criação de emoção e expectativa surge reduzida à noção simplista segundo a qual retirando informação ao espectador, a tensão do espectáculo aumenta (esquecendo, justamente, que Hitchcock revelava quase sempre a explicação do mistério, quem-como-onde, para construir o drama a partir da circulação contraditória da própria informação). Pretexto para recordarmos alguns momentos emblemáticos da relação comercial entre filmes e livros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Outubro), com o título 'Cinema, literatura e os seus milhões de dólares'.

Entre a primeira edição do livro de Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, e o lançamento da respectiva adaptação cinematográfica decorreu pouco mais de um ano e meio. É mesmo verdade que vivemos num tempo em que a velocidade constitui um valor essencial — a dinâmica dos mercados mede-se também pela rapidez com que são gerados determinados acontecimentos globais.
Não existe um padrão estável para descrever todos os fenómenos do género. Em todo o caso, se recordarmos alguns dos vencedores mais célebres dos Oscars da Academia de Hollywood, dir-se-ia que A Rapariga no Comboio reduziu para metade o “timing” de algumas referências clássicas. Pensemos, por exemplo, em três títulos consagrados como melhores filmes do respectivo ano de produção: E Tudo o Vento Levou (1939), de Victor Fleming, O Padrinho (1972), de Francis Ford Coppola, e O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme. Pois bem, os romances que os inspiraram (da autoria, respectivamente, de Margaret Mitchell, Mario Puzo e Thomas Harris) surgiram, no mínimo, três anos antes das respectivas adaptações cinematográficas.
Ainda assim, a questão fulcral não estará tanto nas medidas do calendário como nos próprios mecanismos da indústria. Acontece que, para o melhor ou para o pior, as máquinas de produção de filmes e livros foram consolidando formas peculiares de colaboração, com mútuas vantagens financeiras. Há mesmo cada vez mais casos em que as adaptações de determinados romances são negociadas antes do seu aparecimento nas livrarias. E não deixa de ser irónico que Paula Hawkins se tenha defendido publicamente de algumas acusações de plágio de Gone Girl/Em Parte Incerta, o romance de Gillian Flynn publicado em 2012, dois anos mais tarde transformado em filme por David Fincher. De facto, Hawkins e Flynn partilham um inusitado privilégio: a passagem dos seus livros ao cinema foi estabelecida antes do público ter acesso à sua escrita.

Um mundo de “franchises”

A criação de “franchises” livro/filme define, afinal, uma das vias principais do actual negócio do cinema. Basta lembrar o peso dominante das adaptações de histórias de banda desenhada (em particular das chamadas “novelas gráficas”), fenómeno que transformou impérios da edição como a Marvel (Homem de Ferro, Capitão América, etc.) ou a DC Comics (Batman, Super-Homem, etc.) em forças poderosíssimas no interior de Hollywood.
Isto sem esquecer, claro, as adaptações da chamada literatura para “jovens adultos” cujo mercado global cresceu de forma exponencial. Neste domínio, Harry Potter, de J. K. Rowling, A Saga Twilight, de Stephenie Meyer, e The Hunger Games, de Suzanne Collins, constituem impressionantes fenómenos comerciais. Para termos uma ideia aproximada dos valores que tais “franchises” movimentam, vale a pena recordar que as receitas globais dos sete filmes de Harry Potter ultrapassam os 4,5 mil milhões de dólares (cerca de 4 mil milhões de euros).
Está por fazer a “sociologia” destes fenómenos, porventura não ignorando um facto que merece ser registado: assim, os livros que estão na base das três “franchises” referidas (aliás, tal como A Rapariga no Comboio e Em Parte Incerta) foram escritos por mulheres. Seja como for, para além de qualquer questão de género, não há dúvida que alguns dos títulos que conseguem mobilizar mais espectadores para as salas representam fenómenos que começaram no espaço específico dos livros. O triunfo do marketing parece óbvio. Resta saber se isso transformou leitores e espectadores. E, sobretudo, como.